Uma pergunta recorrente entre aqueles que analisam a América Latina é: quais são as semelhanças entre seus países? No meu caso, estou cada vez mais convicto de que o racismo é o elemento que melhor explica uma série de fenômenos políticos, sociais e econômicos, por estar presente em todos países, continentais ou insulares, grandes e pequenos, do rio Bravo, no México, ao cabo de Hornos, no Chile, sem que importe o idioma ou se os países têm raízes antigas ou são jovens como a Guiana.
Se bem seja uma característica bastante frequente e com presença em outros países, na região o racismo é um traço compartilhado com origem na colonização, que as elites de cada país mantiveram e cultivaram com esmero. O processo de dominação estrangeira, em alguns casos iniciado há 500 anos, registrou diferenças substanciais devido às diferenças entre os colonizadores, às migrações e aos sistemas econômicos, entre outras coisas. Parte-se assim de um fato comum cujos matizes dificultam generalizar sobre seus efeitos.
O racismo é um atraso colonial que se baseia na desumanização e na suposta inferioridade dos indígenas e escravos para justificar sua submissão. Mas séculos depois do momento de fundação, o racismo ainda se mantém, fortalecido e sofisticado pelos benefícios que gerou e ainda gera para as elites e as classes médias latino-americanas. Ainda que a definição mais simples de racismo seria que se trata de um sistema de diferenciação em função de características fisiológicas e étnicas, o relevante é que se trata de um mecanismo de poder que serve para discriminar, dificultando ou favorecendo o acesso a todo tipo de recurso.
Para além do fato biológico, no racismo existe além disso um problema de identidade: quando as identidades são construídas em oposição a um “outro” simbólico, certas características do sujeito são ocultadas ou sublimadas a fim de acentuar as diferenças. Por isso são insustentáveis os argumentos que minimizam a importância do racismo ao afirmar que a região toda é mestiça, ou que não entendem como se pode perceber como “brancas” pessoas em cujos traços se percebe que seus avós não vieram da Europa.
Para compreender esse fato, é útil a ideia de “fronteira étnica” proposta por Andrés Guerrero, entendida como uma espécie de artefato simbólico de dominação no qual as relações cotidianas produzem e reproduzem, de forma simultânea, o “indígena” e o “branco mestiço” (argumento facilmente adaptável a regiões onde vivem afrodescendentes). É uma estrutura elementar de dominação étnica que instaura uma dicotomia primária entre o índio ou negro e o não índio ou negro, que organiza e justifica as posições que as pessoas ocupam na sociedade, assim como as relações de poder.
O enfrentamento ocorrido na Bolívia depois que Evo Morales “renunciou” por sugestão do general Kalimán mostrou as caras mais brutais do racismo. O mesmo acontece no Brasil para deslegitimar a política social dos governos do PT. Mas não se trata de fenômenos próprios de zonas de alta população indígena —Andes, Mesoamérica, Cuenca del Plata— ou passado escravagista, e sim de um traço que cruza todos os países com formas distintas de identidade e expressão. Aos sinais mais visíveis de racismo, como o uso desdenhoso ou insultuoso dos termos “índio” e “negro”, se somam formas sutis: microrracismos, para dar um nome à coisa. Será que “naco”, no México; “cholo”, em diversos países; “canario”, no Uruguai; ou os argentinismos “villero”, “grasa” ou o “cabecita” peronista não costumam adquirir conotações pejorativas e etnossociais? A prova está na abundância de villeros, nacos e cholos loiros e de olhos claros.
O racismo também é desigualdade econômica —a organização assistencial Oxfam demonstrou a clara correlação entre renda e “raça”, no México— e isso não é culpa das elites estrangeiras, mas das elites e classes médias de cada país. Ademais, isso limita a mobilidade social, o que acentua as diferenças de classe e de status, gerando frustração social e política a um só tempo. O argumento é simples: se os espaços de poder e ascensão social e econômica estão muito relacionados às características raciais, e ademais os mecanismos clássicos de mobilidade, como a educação ou a carreira profissional, deixam de funcionar, de que serve a um indígena ou afrodescendente se esforçar no estudo ou trabalho, se certas posições na prática lhe estarão vedadas? A coisa é ainda mais bruta quando, mesmo para trabalhos que requerem menos qualificação, e sobretudo para mulheres, é comum pedir “boa aparência”, eufemismo que encobre cânones fisiológicos e estéticos branco-mestiços.
Assim, por exemplo, vemos como no Chile, México e Venezuela as pessoas que descendem em segunda ou terceira geração de imigrantes europeus ou árabes conseguiram galgar posições sociais e econômicas com mais facilidade devido à rejeição dessas sociedades às suas próprias origens. Elas tiveram acesso a recursos vedados aos cidadãos de origem local ainda que, em um primeiro momento, suas condições econômicas talvez fossem iguais às dos nativos. A diferença substancial entre os dois grupos existe em termos de status. Mas um dos piores defeitos do racismo é a fraqueza da democracia, da cidadania e do Estado de Direito. Como sistemas que partem da ideia de igualdade podem funcionar em sociedades nas quais as pessoas têm direitos desiguais em função da cor de sua pele?
Tradução de Paulo Migliacci
Francisco Sánchez é cientista político. Diretor do Instituto de Iberoamérica, na Universidade de Salamanca. Professor de ciência política com especialização em política comparada da América Latina. Doutor e mestre em estudos latino-americanas pela Universidade de Salamanca.
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