Começa nesta quarta-feira (30) no STF o julgamento mais importante do século para os povos indígenas e suas terras. Entenda neste artigo por que a tese do marco temporal é inaceitável. Vamos juntos defender os direitos indígenas
Essa é uma das muitas normativas que têm como foco a proteção dos direitos dos povos indígenas de continuar a ser indígenas e de manter-se como coletividade, como povo. Esse direito coletivo de povo corresponde, no plano individual, ao direito à vida; é um direito fundamental e inerente à existência. Garantir esse direito, com toda a sua carga cultural e espiritual, requer a existência de um território onde possam habitar em caráter permanente, como condição para sua reprodução cultural, social e espiritual. Impor uma data para que esse direito exista ou deixe de existir, chamada “marco temporal”, é, portanto, legitimar uma política genocida.
O Supremo Tribunal Federal (STF) realizará em breve o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata da reintegração de posse de área da Terra Indígena (TI) Ibirama/La Klãnõ, do povo xoclengue, a pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). Ao determinar que esse caso terá repercussão geral, o STF definiu que será decisivo para o futuro dos povos indígenas do Brasil.
O que está em disputa é a tese do “marco temporal”, que defende, de maneira equivocada, que os direitos indígenas começaram com a Constituição — em 5 de outubro de 1988 — e que, portanto, as demarcações só valeriam para as terras que estivessem sob posse dos povos naquela data ou sob deflagrada disputa.
Essa tese despreza o direito originário dos povos indígenas a seus territórios. Ignora também um passado colonial que se arrasta dissimuladamente até hoje, marcado por uma disputa assimétrica que reiteradamente resulta na violação e na expulsão dos povos de seus territórios ancestrais. Para muitos deles, era impossível — sob pena de morte — estar fisicamente presente em seus territórios em 1988; para outros tantos, esse é um “pré-requisito” impraticável ainda nos dias atuais.
O pedido feito pelo IMA manifesta uma falsa dicotomia. Não existe escolha entre direitos territoriais de povos indígenas e conservação da natureza. Eles são intrínsecos. A coexistência com a natureza e os valores de conservação são inerentes à existência dos povos, ao reproduzirem seu modo de vida e cultura.
Além da proteção física que os povos indígenas asseguram a seus territórios, o reconhecimento legal de seus direitos territoriais garante maior segurança jurídica para a conservação da biodiversidade. As terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis, além de serem de usufruto exclusivo dos povos indígenas. As unidades de conservação — que também são ferramentas importantes de conservação da natureza — são mais frágeis juridicamente, uma vez que passíveis de desafetação (redução nos limites) por lei.
As políticas de conservação que visam a proteger a natureza e, invariavelmente, contam com a existência e o manejo dos povos indígenas precisam garantir que se alinhem às suas motivações e governança. Os povos indígenas são guardiões por excelência da natureza, sem a qual não será possível vencer a mais grave emergência que ameaça a humanidade — a climática. Defender os direitos dos povos indígenas é, portanto, garantir a existência das futuras gerações.
Carlos Marés é professor titular de Direito Socioambiental do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Carolina Marçal é integrante da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil e mestre em gestão de áreas protegidas da Amazônia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
Este artigo foi originalmente publicado em O Globo.
Comentários