Mesmo em meio às incertezas trazidas pela COVID-19, nós da Agência Pública não tivemos dúvida sobre onde deveríamos colocar nossa atenção: nas desigualdades desnudadas pela pandemia e na atuação do governo brasileiro em um momento tão crítico

Que ano. 2020 ficará marcado na vida de todos que o viveram como o ano em que o imponderável tomou as rédeas de todos os acontecimentos, o ano em que acostumamo-nos a conviver com a incerteza, a imprevisibilidade.

Parece também ter sido o ano em que nos acostumamos ao horror, à inominável morte de mais de 185 mil brasileiros e 1,67 milhão de pessoas pelo mundo afora, como se fosse um fato corriqueiro da vida. O ano em que chefes de Estado atuaram contra as suas populações, piorando os efeitos da pandemia em diversos países – seja por incompetência, corrupção, omissão ou, como aqui, por puro desprezo à vida das pessoas, irrelevante no cálculo político.

Na Agência Pública, como em todos os veículos de imprensa do mundo, passamos a trabalhar com a imprevisibilidade como fator onipresente no nosso dia-a-dia; foi uma tarefa extremamente árdua entender os meandros de uma doença da qual ainda hoje se sabe pouco, para trazer informações confiáveis aos nossos leitores.

Imprevisibilidade, ainda, de condições de trabalho: em março, estávamos nos preparando para voltar à redação depois de uma longa reforma, quando tivemos que retornar todos para casa e fazer o que sempre evitamos, jornalismo pelo telefone.

Mesmo em meio a tantas incertezas, não tivemos dúvida sobre onde deveríamos colocar nossa atenção: nas desigualdades e injustiças que a pandemia de COVID-19 desnudaria, atingindo de maneira diferente os pobres e os ricos. De fato, o que ocorreu, conforme nos explicou a pneumologista Margareth Dalcolmo, foi que a epidemia chegou ao Brasil através da classe média e rapidamente se espalhou para a classe trabalhadora, que não tinha como ficar parada em casa – em especial os trabalhadores informais – e cujas famílias vivem em casas sobreocupadas, sendo impossível o distanciamento social que tornou-se a única medida eficaz para conter o vírus.

Apostando no jornalismo de dados, conseguimos chegar a revelações de impacto. Bem no comecinho do isolamento social, mostramos como o Brasil tem vários desertos de unidades de tratamento intensivo – informação de extrema relevância para um país que começava a ser afetado pelo coronavírus. Apuramos que antes da pandemia os presídios do país já enfrentavam uma epidemia de tuberculose. Em maio, revelamos que em duas semanas, o número de mortes de negros por Covid-19 foi cinco vezes maior do que de brancos no Brasil. Mesmo assim, tivemos que enfrentar, como todos os demais jornalistas, um apagão de dados do governo federal – as inconsistências nos dados e os erros repetidos geraram uma verdadeira “caixa preta” no início da pandemia.

Em certos casos, nossos repórteres não deixaram, de sair às ruas para acompanhar a situação da população. Nos primeiros dias da pandemia, uma repórter conseguiu viajar para uma pequena cidade fluminense onde conseguiu conversar (de longe) com a família de uma doméstica de 63 anos que morreram de coronavírus. Voltavam do enterro. Sua patroa, ao retornar de uma viagem à Itália, não a informou sobre os riscos de contaminação nem isolou-se. Sua morte foi a primeira no estado do Rio de Janeiro e a quinta no país. “Se a informação tivesse chegado antes, talvez pudéssemos mudar a história clínica”, disse o diretor do hospital à Agência Pública. Poucos dias depois, as estradas do Rio de Janeiro foram fechadas.

Investigamos também a situação dos indígenas frente ao coronavírus, sob ataque do governo, que de propósito enfraquece as instituições que deveriam zelar por eles, abrindo seus territórios à ação de invasores e ladrões de recursos naturais. Os indígenas urbanos não ficaram mais a salvo: em Dourados, no Mato Grosso, eles foram contaminados a partir de um frigorífico da JBS. Os frigoríficos, aliás, tiveram um papel crucial em espalhar a COVID nas pequenas cidades, conforme registramos.

 

Fonte: https://apublica.org/2020/12/2020-um-ano-que-nao-vai-deixar-saudade/

Thank you for your upload