AMAZÔNIA REAL: BR-319 – O começo do fim para a floresta amazônica brasileira

Por: Philip Martin Fearnside | 06/10/2020 às 19:35

Impactos em grande escala

A reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) está certamente entre as decisões mais importantes para o Brasil hoje. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) foi submetido ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), onde está recebendo tratamento acelerado pelo que parece ser uma aprovação predeterminada. A aprovação apressada de um projeto que implique uma grande expansão da área na Amazônia que está exposta ao desmatamento é extremamente imprudente [1, 2].

Até agora, o desmatamento tem sido quase totalmente limitado ao “arco do desmatamento” ao longo das bordas sul e leste da floresta, e à metade leste da região, onde o acesso rodoviário já está implantado [3]. O alcance do impacto da rodovia BR-319 é muito mais do que a faixa ao longo da rota da rodovia que é o assunto do EIA – ela abre as porções central e norte da Amazônia para a migração a partir do “arco do desmatamento” e está associada a planos para estradas adicionais que abririam a vasta área de floresta intacta no oeste do Estado do Amazonas [4]. Abrir esta região “Trans-Purus” ao desmatamento seria catastrófico para o Brasil, levando à perda de serviços ambientais críticos.

Essas incluem o abastecimento de água à cidade de São Paulo, pois a região Trans-Purus é o último grande bloco de floresta intacta na Amazônia brasileira, e perder essa área significa perder a função da floresta amazônica de reciclar a água que é carregada nos “rios voadores” para as principais áreas urbanas e agrícolas do Brasil [5-10]. Durante o pico da estação chuvosa em São Paulo, quando os reservatórios que abastecem a cidade se enchem, a Amazônia está fornecendo 70% da água [11]. São Paulo quase ficou sem água várias vezes, mesmo com a função de ciclagem da água da Amazônia ainda intacta.

O EIA para reconstruir o “trecho do meio” da BR-319 já está disponível publicamente [12]. O EIA define uma “área de impacto direto” (ADA) e uma “área de impacto indireto” (AIA) que excluem os impactos mais amplos da rodovia, incluindo a região crítica “Trans-Purus” a oeste do Rio Purus. Apesar de muitas falhas no relatório, há passagens enterradas nas suas 3.735 páginas que reconhecem muitos dos verdadeiros impactos do projeto, pelos quais os autores devem ser parabenizados. Entre esses impactos é a ameaça que a reconstrução da BR-319 representa para a região Trans-Purus ao desencadear uma cadeia de eventos que resultaria na abertura da rodovia planejada AM-366, assim permitindo que os desmatadores entrem nesta região crítica:

A repavimentação e operação plena da BR-319 em toda sua extensão poderá estimular que políticos regionais pressionem o governo do Amazonas para retomar o projeto de implantação da rodovia AM-366. Este risco e bem concreto na medida em que, passado poucos anos da abertura da BR-319, foi aberto por iniciativa provavelmente de agentes particulares, um “picadão” ligando a BR-319 a cidade de Tapauá. ([13], p. 119).

O EIA também menciona a relevância da atual administração presidencial do Brasil para o aumento do risco de construção do AM-366:

Nas condições políticos-institucionais hoje presentes na região e no pais, somadas às iniciativas do executivo federal em rever medidas de proteção ambiental e de facilitação do avanço do agronegócio no sul do Amazonas – como antes registrado – é bastante factível que o projeto da AM-366 obtenha respaldo politico suficiente para sua implantação. ([13], p. 119).

Menciona-se o potencial de invasão das áreas abertas pela rodovia AM-366 e pelo ramal ilegal que está sendo feito entre Tapauá e a BR-319:

[A AM-366] ofereceria aos migrantes do sul/sudeste e, especialmente, aqueles vindos de Rondônia, uma via aberta para a abertura de lotes em terras publicas – a custo zero, portanto. ([13], p. 83).

O EIA também menciona a probabilidade de AM-366 brotar estradas secundárias (ramais) para fornecer acesso às áreas de produção de petróleo e gás planejadas para exploração no âmbito do maciço projeto “Área Sedimentar do Solimões”:

A questão da exploração dos blocos da bacia do Solimões .,,, ganha maior relevância devido justamente à possível interligação entre a BR-319 e os municípios de Tefé e Coari por meio da rodovia AM-366, de onde poderiam “sair” os ramais rodoviários para os pontos das instalações petrolíferas… ([13]. p. 106).

Já estão sendo construídos ramais ilegais a partir da BR-319, tais como um ramal iniciado em fevereiro de 2020 para entrar em uma área protegida (a Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande) [14]. Existem também estradas ilegais sendo construídas na direção oposta, partindo de pequenas cidades no rio Purus e avançando em direção à BR-319. Além do ramal ilegal que está sendo construído a partir de Tapauá ([13], p. 119-121), o EIA menciona uma estrada ilegal semelhante sendo construída para ligar Canutama à BR-319, que já tem 40 km de extensão ([12], p. 2.565).

O projeto de petróleo e gás é uma grande ameaça para as florestas da região de Trans-Purus porque a escala do projeto significa que as empresas que exploram o petróleo e gás teriam um grande motivo para pressionar o governo a fornecer acesso por estrada [15].

O EIA toca na responsabilidade do DNIT pelo resultado desastroso que resultaria do papel da BR-319 em aumentar a probabilidade da AM-366 ser construída.

Além desta cadeia de eventos que de certa forma coloca o empreendedor em algum grau de responsabilização com a eventual ligação terrestre BR-319-cidade de Tapauá, ([13], p. 120),

Apesar de alguns trechos no EIA reconhecerem o impacto mais amplo do BR-319, isso não se traduz em recomendações sobre o que fazer a respeito. Em vez disso, o foco é restrito à ADA e à AIA, e as recomendações se limitam a apontar que a governança é necessária para minimizar os impactos. Questionar a existência do projeto, ou adiá-lo por um período substancial de anos enquanto a governança esteja estabelecida, não são apresentadas como opções sérias.

As recomendações para evitar os impactos massivos são limitadas ao apelo padrão por “governança”, mas as chances são quase zero de um programa para isto ser implementado em uma escala que evitaria impactos desastrosos. A área da BR-319 está praticamente sem lei hoje, com grilagem e invasões ilegais de terras, extração predatória de madeira e construção de ramais ocorrendo com impunidade. É simplesmente fictício que “a BR-319 será um exemplo sustentável para o mundo”, como afirmam os deputados da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas [16].

Povos indígenas

Grupo de Indígenas na BR-319 (Foto: Ben Sutherland/Wikimedia)

O componente indígena é crítico. Aparentemente, isso foi submetido ao órgão licenciador (IBAMA) algum tempo depois do restante do EIA. Embora a separação no tempo tenha sido relativamente curta neste caso, é uma irregularidade importante, repetindo o escândalo que cercou o EIA 2015 da Barragem de São Luís do Tapajós [17]. Assim como naquela polêmica barragem, o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), que é o documento que serve para a discussão pública do projeto (incluindo as audiências públicas), foi obviamente concluído antes que o componente indígena estivesse disponível e não contém informações sobre os povos indígenas [18].

A questão da consulta aos povos indígenas afetados pelo projeto da rodovia BR-319 representa um teste-chave para o sistema jurídico brasileiro. Apesar dos esforços do Ministério Público para tornar o Brasil um estado de direito nesse sentido, esses esforços falharam até agora, como nos casos das Barragens de Belo Monte e São Manoel [19-21].

O EIA da BR-319 menciona o fato de que a legislação brasileira e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT-169) [22] exige a consulta prévia aos povos indígenas afetados, e isso significa consultá-los não apenas antes do início das obras, mas antes de fazer qualquer decisão sobre se deve ou não prosseguir com o projeto:

“E o artigo 15° da Convenção explicita que esta consulta deve se dar antes que os governos estatais empreendam ou autorizem qualquer programa de prospecção ou exploração de recursos existentes no habitat dos povos indígenas”. ([13], p. 27).

No caso da BR-319 nenhum povo indígena foi consultado, apesar da licitação do projeto já ter sido aberta e o início das obras ser imanente em violação da OIT-169 [23] e a lei brasileira (10.088, de 05 de novembro de 2019 [24], anteriormente 5.051, de 19 de abril de 2004 [25]), que implementa a Convenção. O DNIT planeja fazer sua “consulta” enquanto a construção da estrada estiver em andamento. O plano é consultar apenas cinco áreas indígenas, apesar do impacto da estrada se estender muito mais.

Os regulamentos internos do IBAMA ([26], Anexo II, [27]) consideram todas as áreas indígenas dentro de 40 km de uma rodovia na Amazônia como “diretamente impactadas” e exige que elas sejam incluídas no componente indígena do EIA. No caso de toda a extensão da BR-319 (não apenas o “trecho médio”), existem 13 áreas indígenas dentro do limite de 40 km [28]. A reconstrução do trecho do meio é o que desencadearia os impactos de toda a estrada, abrindo as comportas para o tráfego e a migração. A OIT-169 e a sua replicação na legislação brasileira não têm limite de distância para impactos que requerem consulta. Esses impactos vão muito além da área considerada no EIA. Além dos povos indígenas nos diversos destinos dos fluxos migratórios que a rodovia estimularia, como os no Estado de Roraima [29], o desmatamento a partir da própria rota da rodovia pode ultrapassar os 40 km [30]. Se for considerado um limite de 150 km, 63 áreas indígenas seriam consideradas impactadas [28].

Concluindo, a reconstrução da rodovia BR-319 traz enormes impactos e poucos benefícios. Além da necessidade de cumprir os requisitos legais, como obter o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas, os líderes brasileiros devem fazer uma pausa para considerar a sabedoria do próprio projeto, dada a ameaça que representa aos interesses nacionais do País. Arriscar a perda dos serviços ambientais da Amazônia, como o fornecimento de água para São Paulo, não é pouca coisa para o Brasil.

A imagem que abre este artigo mostra uma queimada em área de mata e vista a beira da rodovia BR-319 próxima a Porto Velho, Rondônia. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real./12/08/2020)

Notas

[1] Fearnside, P.M. 2018. BR-319 e a destruição da floresta amazônica. Amazônia Real 19 de outubro de 2018.

[2] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.

[3] Fearnside, P.M. 2017. Deforestation of the Brazilian Amazon. In: H. Shugart (ed.) Oxford Research Encyclopedia of Environmental Science. Oxford University Press, New York, E.U.A.

[4] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020.Região Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real.

[5] Arraut, J.M., C.A. Nobre, H.M. Barbosa, G. Obregon, & J.A. Marengo. 2012. Aerial rivers and lakes: Looking at large-scale moisture transport and its relation to Amazonia and to subtropical rainfall in South America. Journal of Climate 25: 543-556.

[6] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525, 13.337–13.359.

[7] Keys, P.W., R.J. van der Ent, L.J. Gordon, H. Hoff, R. Nikoli, H.H.G. Savenije. 2012. Analyzing precipitationsheds to understand the vulnerability of rainfall dependent regions. Biogeosciences 9: 733–746.

[8] Marengo, J.A., M.W. Douglas & P.L.S. Dias. 2002. The South American Low-level jet east of the Andes during the LBA-TRMM and LBA-WET AMC campaign. Journal of Geophysical Research (Atmospheres) 107(20D): 47.1-47.11.

[9] Marengo, J.A., P.L.S. Silva Dias & M. Douglas, 2002. The South American low-level jet East of the Andes during the LBA-TRMM and WET AMC/LBA campaigns of January-April 1999. Journal of Geophysical Research (Atmospheres) 107: 8079.

[10] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo. Amazônia Real.

[11] Zemp, D. C., Schleussner, C.-F.; Barbosa, H. M. J.; van der Ent, R. J.; Donges, J. F.; Heinke, J.; Sampaio, G.; Rammig, A. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South America. Atmospheric Chemistry and Physics 14: 13.337–13.359.

[12] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. BR-319/AM: EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do km 250,00 ao km 655,70. DNIT, Brasília, DF. 2.795 p.

[13] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. Estudo do Componente Indígena CI Preliminar da Etnia 3 – Apurinã – Rev C. DNIT, Brasília, DF. 173 p.

[14] Fearnside, P.M., L. Ferrante & M.B.T. de Andrade. 2020. Ramal ilegal a partir da rodovia BR-319 invade Reserva Extrativista e ameaça Terra Indígena. Amazônia Real, 09 de março de 2020.

[15] Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões”. Amazônia Real, 12 de março de 2020.

[16] Amazonas em Tempo. 2020. BR-310 será exemplo sustentável para o mundo, dizem deputados. Amazonas em Tempo, 22 de setembro de 2020.

[17] Fearnside, P.M. 2016. A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. Amazônia Real.

[18] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. Relatório de Impacto Ambiental: Reconstrução/Pavimentação BR-319/AM – Trecho do Meio. DNIT, Brasília, DF. 53 p

[19] Fearnside, P.M. 2017. Belo Monte – Atores e argumentos. Amazônia Real.

[20] Fearnside, P.M. 2017-2018. Belo Monte – Lições da Luta. Amazônia Real.

[21] Fearnside, P.M. 2017. São Manoel: Barragem amazônica derrota Ibama. Amazônia Real, 25 de setembro de 2017.

[22] ILO (International Labour Organization), 1989. C169 – Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169). ILO, Genebra, Suiça.

[23] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. BR-319: O caminho para o desmatamento da Amazônia. Amazônia Real, 07 de agosto de 2020.

[24] PR (Presidência da Republica),2019. Decreto Nº 10.088, de 5 de novembro de 2019.

[25] PR (Presidência da Republica), 2004. Decreto No 5.051, de 19 de abril de 2004. PR, Brasília, DF.

[26] MMA (Ministério do Meio Ambiente). 2011. Portaria Interministerial Nº 419, de 26 de outubro de 2011. 28 de outubro de 2011 (nº 208, Seção 1, p. 81). Diário Oficial da União.

[27] MMA (Ministério do Meio Ambiente). 2015. Portaria Interministerial Nº 60, de 24 de março de 2015. 25 de março de 2015 (nº 57, Seção 1, p. 71). Diário Oficial da União.

[28] Ferrante, L., M.P. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. BR-319 ameaça povos indígenas. Amazônia Real,

[29] Barni, P.E., P.M. Fearnside & P.M.L.A. Graça. 2018. Simulando desmatamento e perda de carbono na Amazônia: Impactos no Estado de Roraima devido à reconstrução da BR-319 (Manaus-Porto Velho).In: Oliveira, S.K.S. & Falcão, M.T. (Eds.). Roraima: Biodiversidade e Diversidades. Editora da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Boa Vista, Roraima. p. 154-173.

[30] dos Santos Junior, M.A., A.M. Yanai, F.O. Sousa Junior, I. S. de Freitas, H.P. Pinheiro, A.C.R. de Oliveira, F.L. da Silva, P.M.L.A. Graça & P.M. Fearnside. 2018. BR-319 como Propulsora de desmatamento: Simulando o Impacto da Rodovia Manaus-Porto Velho, Instituto de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (IDESAM), Manaus, Amazonas. 56 p.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/br-319-o-comeco-do-fim-para-a-floresta-amazonica-brasileira-06-10-2020/

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