Falta de demarcaçaõ definitiva de terras deixa indígenas e quilombolas expostos à ação de invasores

Maria Regina Telles, Monalisa Coelho e Karina Custódio

São Luís (MA) e Palmas (TO) |

 18 de Dezembro de 2022 às 11:08

“Nunca aconteceu como na sexta, queimando duas casas, numa delas a mulher está gestante. Perderam tudo, incluindo documentos e dinheiro, que estava guardado para comprar itens do enxoval”. O incêndio aconteceu no Território Quilombola Boa Hora 3/Marmorana, onde vivem cerca de 150 pessoas, quase 40 famílias, dia 18 de novembro, conta Raimunda Nonata Costa da Silva, liderança de Alto Alegre do Maranhão (MA). 

O caso é um exemplo das queimadas e incêndios que têm atingido comunidades tradicionais no Maranhão e no Tocantins. Entre as consequências estão a perda de animais, destruição de casas e roças e prejuízo à saúde mental e física de adultos, crianças e idosos, pelo excesso de fumaça. 

Os moradores relatam problemas na regularização de suas terras, o que vem acompanhado de constantes ameaças de invasores.

No Brasil,  de cerca de 3.600 grupos quilombolas, apenas 154 foram titulados e 1.700 aguardam a conclusão de estudos antropológicos ou emissão de laudos técnicos para conquistarem seus títulos definitivos, segundo dados da Fundação Cultural Palmares e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

O Maranhão é o estado que tem a maior demanda por titulação de terras quilombolas do país, e a morosidade destes processos favorece a ação de grileiros. 

O Tocantins, região onde um povo isolado foi identificado em 2019,  também foi atingido por um grande incêndio, em junho. O fogo ameaçou os indígenas, que já haviam sofrido suas consequências em 2021. 

“Todos os anos, ocorrem grandes incêndios na Ilha do Bananal (TO), incêndios ilegais para renovação de pasto, pois existe o arrendamento de gado por alguns indígenas que vivem na Ilha”, relatou Kamutaja Silva Ãwa, presidente da APÃWA-TO, associação indígena do seu povo, sobre o fogo que atingiu a Terra Indígena Ynãwebohona. O arrendamento de terras indígenas para fazendeiros é uma prática que data dos anos 1960, com incentivo governamental, e que é foco de controvérsias jurídicas desde então. 

Ranking do fogo 

Os depoimentos confirmam os dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) que denunciam o aumento das queimadas nos dois estados. 

O Tocantins ocupou a segunda posição no ranking nacional de desmatamento nos primeiros oito meses deste ano, atrás somente do Mato Grosso em focos de queimadas. Apenas no mês de outubro, foram registrados no Maranhão 1.269 focos de incêndio e no Tocantins, 2327 queimadas. 

O recorde histórico de queimadas na Amazônia ocorreu em setembro, com 41.282 focos de incêndio, mais do que o dobro do ano anterior. 

Leia também: Mapbiomas alerta sobre aumento de 66% em queimadas no Brasil

Conforme um estudo publicado pela revista inglesa Nature Ecology & Evolution (2022), na Amazônia brasileira, “a maior parte dos incêndios de agosto e setembro de 2022 (35% deles) foi em áreas protegidas vulneráveis, terras indígenas e outras áreas públicas que não são obrigadas a se registrar no Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Brasil”. A inscrição no CAR é obrigatória para todos os imóveis rurais do país e o primeiro passo para a regularização ambiental.

“Embora o CAR não estabeleça a propriedade da terra, os grileiros têm usado este instrumento para reivindicar a propriedade de terras públicas ocupadas ilegalmente. Os incêndios ativos nessas áreas aumentaram 69% em comparação com agosto e setembro de 2021. Nos últimos anos, a Amazônia brasileira tornou-se altamente vulnerável à grilagem de terras e à especulação, e esses incêndios são o resultado”, afirma o estudo. 

O fogo é ferramenta de ameaça nas comunidades

De volta à comunidade quilombola Marmorana e Boa Hora 3, no Maranhão, as ocorrências violentas contra pessoas de direitos coletivos e contra a natureza se acumulam. Dona Raimunda relatou que incêndios que atingem casas não são novidade. Em 2015, duas casas foram queimadas e até hoje não se sabe quem foram os responsáveis.

Área queimada na cidade de Alto Alegre do Maranhão onde o fogo atingiu duas casas/ Arquivo da Comunidade

“Só tem suspeita, mas não tem nada concreto. Nessa época, a área estava passando pelo estudo antropológico e a gente estava se reunindo aqui na Boa Hora. O incêndio aconteceu só na Marmorana”, conta. 

Marmorana é onde trabalham. “Agora aconteceu de novo. Só que agora foi mais claro, porque o grileiro desmatou e colocou fogo, e o fogo a gente tem certeza absoluta que foi de lá, porque é muito perto e foi à tarde, todo mundo tava em casa e viu que o fogo veio de lá”, afirmou.

Ela conta ainda que, “dentro da área que ele desmatou, tem uma parte muito bonita, de floresta, mas tem uma parte que a gente deixava, a gente não colocava roça lá, tem olho d’água, água limpinha. Essa parte agora foi agredida pelo grileiro”. 

A líder quilombola reforça que a relação da comunidade com a terra é de trabalho. “Ao contrário do grileiro que chegou e desmatou, tocou fogo, quando a gente está em encontro, a gente ouve muito que a Terra é a mãe natureza, porque é na terra que a gente vive e é dela que tiramos o sustento. Então, a nossa relação com a terra é preservar.”, explica. 

Em 22 de novembro, organizações integrantes da Campanha Contra a Violência no Campo lançaram nota pública em defesa do território, exigindo que o Governo do Estado do Maranhão e o Governo Federal adotem medidas para proteger a vida, a saúde e a integridade da população, além da conclusão do processo de titulação quilombola, investigação ampla e célere dos graves crimes cometidos contra os quilombolas, doação de cestas básicas para as famílias que perderam tudo e a reconstrução das casas incendiadas.  

A Comissão Pastoral da Terra (CPT), Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema), Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram algumas das organizações signatárias da nota. 

Arrendamentos e incêndios

No Tocantins, a lógica de violação de direitos também é uma constante no modus operandi dos invasores. As comunidades indígenas Ãwa, Javaé, Karajá e Xambiá, que vivem na Ilha do Bananal, passaram por um histórico de conflitos, iniciado ainda na colonização, com posseiros e fazendeiros que viviam em seu entorno. Na ilha, há três processos de demarcação sem conclusão – dois do Povo Javaé e um do Povo Ãwa, que se arrasta desde 2009 – e a comunidade já enfrentou inúmeras ameaças de morte.

O acampamento Itaho (TO) ocupado por pelo povo Ãwa também esteve perto de ser atingido por um incêndio / Kamutaja Ãwa

O arrendamento de terras na Ilha do Bananal não é um processo recente. O antropólogo André Amaral relata que já na década de 1960 a Fundação Nacional do Índio (Funai, nomeada anteriormente como Serviço de Proteção Indígena) negociava com pecuaristas o aluguel dos territórios indígenas. O processo de arrendamento, embora gerasse retorno financeiro para as aldeias, não era pacífico. Os povos indígenas enfrentavam invasões, estupros e, muitas vezes, eram proibidos de plantar em seu próprio terreno. 

Em 1990, os Javaé pediram ao Ministério Público Federal (MPF) que retirasse os pecuaristas de seu território, já que o arrendamento passou a ser considerado crime com a aprovação da Constituição Federal de 1988. Mas a retirada não impediu a prática e, em 2009, uma decisão do MPF-TO permitiu o retorno do gado aos territórios indígenas e o arrendamento das terras passou a ser mediado por organizações originárias. 

As consequências podem ser vistas no vídeo a seguir, que mostra o aumento do desmatamento da área desde 2012. 

Um dos membros da comunidade apontou que suspeita que os pecuaristas são os responsáveis pelo incêndio que, neste ano, quase se alastrou até a Mata do Mamão, onde os indígenas Ãwa isolados foram registrados. Por temer represálias, ele não quis se identificar. 

Ele afirma que as aldeias precisam arrendar a terra para obter recursos e ajudar a população. A Funai é a responsável pela proteção dos Povos Indígenas e de sua cultura, mas para ele o serviço oferecido é incapaz de emancipar os indígenas da dependência dos arrendamentos. 

“Ela ajuda sim, mas não é igual antigamente. Hoje acho que a Funai tá difícil, né? Ainda mais nesse governo passado [de Jair Bolsonaro (PL)], cortou muita coisa e, na verdade, cada ano que passa as coisas estão sendo cortadas. A Funai ajuda, consegue cesta, traz, mas não é a mesma coisa igual antes. Antigamente, a assistência era melhor pro nosso povo”, desabafou.

Relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) já alertaram que o Governo Bolsonaro viola tratados internacionais e ameaça direitos indígenas. Em novembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de agir para proteger a vida de indígenas isolados. O ministro Edson Fachin determinou que o Governo Federal elabore um plano de proteção integral de territórios de povos isolados e de recente contato. 

Injustiça Climática

As histórias das comunidades de Dona Raimunda Nonata e de Kamutaja Ãwa são casos paralelos de estados vizinhos na Amazônia Legal, num universo onde séculos de exploração da natureza e crimes contra comunidades tradicionais cobram seu preço.  

De acordo com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), os últimos seis anos foram os mais quentes do planeta desde 1880. 

O brigadista indígena Vantuires Javaé, há dez anos na Ilha do Bananal, dá detalhes da relação do calor com os incêndios.“Quando você aumenta a temperatura o clima fica mais quente, automaticamente o material combustível se torna maior, a vegetação seca com mais facilidade e por isso os incêndios são maiores.” 

As consequências dos incêndios nas comunidades Javaé, Karajá e Ãwa são drásticas. “Queima a vegetação e isso diminui a caça deles, queima a mata ciliar e os rios vão sofrer mais assoreamento”. 

Além de interferir no modo tradicional de alimentação, Pedro Paulo Xerente, presidente da ABIX Associação dos Brigadistas Xerente, afirma que as queimadas afetam a saúde dos indígenas. “Os incêndios prejudicam a qualidade do ar e dificultam a respiração, principalmente dos idosos! Muitas vezes, as casas queimam por  consequências aos incêndios”.

Resistência

Desde 2018, uma brigada de incêndio capacitada pelo IBAMA, na Terra Indígena (TI) Caru, que é compartilhada pelos povos Guajajara, Awá e Awá-Guajá, no município de Bom Jardim, no Maranhão, está conseguindo evitar incêndios na região. 

De 2015 a 2017, a localidade sofreu queimadas, em sua maioria criminosas, causadas por madeireiros e caçadores, de acordo com Rosilene Guajajara de Souza, liderança da TI Caru e vice-presidente da Associação Comunitária Irazu, da Aldeia Maçaranduba. 

Outra TI muito atingida pelos incêndios foi Arariboia. “Na época, houve muita mobilização para tentar combater esse grande incêndio e algumas brigadas de outros estados vieram dar esse apoio. Ficamos muito preocupados com parentes que vivem lá, os Awá-Guajá, povo em isolamento voluntário, sem contato nem com nós mesmos indígenas”, conta. 

A Abix Xerente forma brigadistas e recupera as matas destruídas / Pedro Paulo Xerente

Ainda segundo Rosilene Guajajara, a Brigada de Incêndio da TI Caru surgiu em 2016, e é composta por 15 brigadistas indígenas e não indígenas. É o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) que faz a seleção e capacitação da Brigada.

O que os governos dizem

Para entender as causas de tantas queimadas nos dois estados, procuramos o Corpo de Bombeiros (CBM) do Maranhão e do Tocantins, que registraram, respectivamente, 17.082 e 12.048 focos de incêndio em 2022. No Maranhão, as causas são em sua maioria ação humana, desmatamento, limpeza de terreno e preparação para o solo em função do plantio. 

Já o CBM/TO informou que não conhece a origem da maioria dos casos de incêndios em vegetação, uma vez que não é realizada perícia em todas as situações. No entanto, a organização avalia que mais 99,9% dos incêndios florestais têm causa humana. 

Segundo o CBM/MA, os municípios com maiores focos são: Mirador e Balsas, no sul do estado, com presença do agronegócio; Fernando Falcão, onde grande parte da população é indígena; e Alto Parnaíba, marcado por conflitos agrários. 

No Tocantins, a predominância é na região da Ilha do Bananal onde há, além da criação de gado, grandes plantações de soja e captação de águas dos rios, no maior sistema de irrigação continuada da América Latina; e nos municípios de Mateiros, Lizarda  (leste do estado) e Paranã (sul do estado TO). 

Ambos os estados não mapearam o perfil das populações que atualmente são mais impactadas pelos incêndios. 

Sobre ações específicas no combate ao fogo em áreas quilombolas e indígenas, o CBM/MA se referiu somente a ações de apoio, quando solicitado, justificando que essas áreas são de responsabilidade do Governo Federal através do IBAMA/Prevfogo e ICMBio. No Tocantins, a resposta partiu da competência federal, mas foi além, citando o Comitê Estadual de Prevenção e Combate a Incêndios e Controle de Queimadas, o Comitê do Fogo. 

Quanto ao orçamento, o CBM/MA informou que houve um investimento de R$3.718.235,00 reais para o combate e prevenção aos focos de incêndios em 2021, (incluindo verbas federais) e que em 2022 o investimento foi de R$2.744.700,00, uma redução de mais de 900 mil reais. 

No que diz respeito à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (SEMA), a pasta desenvolve, desde 2020, o Programa Maranhão Sem Queimadas que visa prevenção e combate a queimadas e incêndios florestais, por meio de ações de sensibilização, orientação, conscientização quanto aos impactos socioambientais e econômicos, assim como prejuízos à saúde. 

Na esfera federal, a redução se repete. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) informou que o orçamento para combate e prevenção aos incêndios nas unidades de conservação federais, em 2022, foi de R$ 95.650.000,00, menor do que em 2021, na ordem dos 120 milhões. Para 2023, não foi disponibilizada a previsão orçamentária. Quanto ao efetivo, o ICMBio informou que há 48 brigadistas atuando no Tocantins e 54, no Maranhão, e que esse efetivo é o mesmo desde 2019. A previsão para contratação em 2023 é de 1.400 brigadistas para atuarem em todo o território nacional. 

Não houve resposta sobre o questionamento do valor investido na prevenção, combate e apoio de comunidades atingidas por incêndios, feito ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), à Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão e à Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Tocantins. O Governo do Maranhão não se posicionou sobre o conflito em Mamorana até a publicação da matéria. A Funai também se manteve em silêncio sobre a proteção dos povos indígenas da Ilha do Bananal (TO) e em relação às medidas determinadas pelo MPF em 2019 para salvaguardar os isolados Ãwa. 

*Este conteúdo foi produzido com apoio do programa Jornalismo e Território, da Énois Laboratório de Jornalismo. Para saber mais, acesse www.enoisconteudo.com.br ou @enoisconteudo nas redes sociais. 

Edição: Nicolau Soares

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2022/12/18/comunidades-tradicionais-lutam-contra-o-fogo-no-maranhao-e-tocantins

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