Por Sucena Shkrada Resk*, Blog Cidadãos do Mundo
Quem dera que falar sobre “mercúrio” fosse um assunto somente de interesse da pauta astronômica? Voltando à realidade do planeta Terra, se trata dos impactos da contaminação pelo metal, altamente letal, um tema ainda subnotificado, que mexe em uma ferida aberta, em especial, na região amazônica, que vem se agravando ao longo dos anos e confirmado por exames e pesquisas realizadas em peixes, ribeirinhos e em povos indígenas. São populações que fazem parte desse ecossistema que sofre pressão de garimpos e, inclusive, de efeitos indiretos de hidrelétricas. O comprometimento com esta pauta ainda é incipiente na agenda das políticas públicas e, com isso, os problemas de saúde ambiental e de direitos humanos que representa podem ser muito maiores, pois estão interligados com outras agendas do mercado comercial e industrial internacionais.
O tema tem exigido uma ação multidisciplinar de vários entes governamentais, que já revelam o grande desafio pela frente. Entre alguns dados recentes, no mês de junho, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) divulgou o Inventário Nacional de Emissões e Liberações de Mercúrio no Âmbito da Mineração Artesanal e de Pequena Escala no Brasil. Tratam-se de informações coletadas em garimpos nos estados do Amapá, Bahia, Mato Grosso e Pará. A pesquisa construiu cenários de emissões e liberações de mercúrio que se basearam na mineração oficialmente declarada e estimativas de ouro produzido de forma ilegal. Esses cenários originam perdas de mercúrio para o meio ambiente que vão de 18,5 a 221,5 toneladas.
O exemplo de Minamata
Quantas pessoas podem estar contaminadas e sequer têm noção do que está acontecendo? Quem se responsabiliza pela segurança alimentar e saúde dessas pessoas e de todo o meio ambiente? Como os efeitos cumulativos da contaminação podem aparecer após anos, é como se fosse uma bomba-relógio. Essa é uma herança pesada que recebemos apesar de o Brasil ter ratificado em 2017, a Convenção Internacional de Minamata sobre Mercúrio, cujo texto foi aprovado quatro anos antes no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). O nome Minamata não é por acaso, pois foi nesta cidade japonesa, onde uma empresa química lançava no mar dejetos com a substância, desde 1930, em que houve muitas vítimas, ao longo de décadas. Estima-se que mais de 700 pessoas morreram em decorrência da contaminação.
De acordo com a Convenção, até 2020, deve haver o banimento de produtos com mercúrio adicionado, como por exemplo, alguns tipos de lâmpadas fluorescentes, pilhas e baterias. Além disso, processos industriais listados pela Convenção terão de fazer a substituição por tecnologias livres de mercúrio, o que infere os processos de extração mineral e na siderurgia, entre outros.
Esta preocupação não se restringe à Amazônia brasileira, pois é uma questão que aflige toda Pan-Amazônia, e há estudos que datam de longa data, desde os anos 90. Há um índice que pode ser consultado na plataforma, que traz esta historicidade e importância do problema de saúde ambiental.
Ação multidisciplinar
Como os estudos são pontuais por alguns institutos e pesquisadores da academia e órgãos governamentais, não se tornaram uma prática constante incorporada na gestão pública como um todo. O que se vê é um quadro incipiente relacionado à prevenção e mitigação (redução de danos), que infere a necessidade de ação de diferentes órgãos, desde a fase de licenciamento dos empreendimentos que utilizam este minério. O que isso quer dizer? O governo federal, no bojo de seus ministérios, agências e autarquias têm uma responsabilidade muito grande sobre o desenrolar desses casos. Essa responsabilidade se estende aos legisladores e, de certa forma, aos cientistas. As externalidades são tantas, que fica difícil mensurar os impactos nos próximos anos e décadas, além dos atuais já deflagrados.
Ao se levantar pesquisas sobre esta pauta, uma das mais recentes foi divulgada em março deste ano, na revista Ecotoxicology and Environmental Safety, uma análise de equipe de pesquisadores brasileiros e espanhóis coordenada pela bioquímica María Elena López, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Os cientistas fizeram uma análise de fios de cabelo de 37 ribeirinhos da região de Caraipé, no lago Tucuruí, nos arredores da Usina Hidrelétrica de Tucuruí. O resultado é alarmante. Eles encontraram a quantidade de mercúrio (em sua forma mais tóxica) sete vezes maior que a tolerável – 10 microgramas por grama de cabelo. Esse padrão de tolerância é recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Essa exposição pode desencadear quadros graves de saúde, entre elas, a doença de Minamata, que é uma síndrome neurodegenerativa, que pode levar à morte, como também deformações fetais em gestantes. O que gera apreensão é que, por muitas vezes, os sintomas levam anos a aparecer, ou seja, é uma doença silenciosa.
O processo de intoxicação se dá pela ingestão de peixes contaminados. De acordo com os pesquisadores, neste caso, ao se apurar os dados históricos da região, o que se constatou foi que essa situação é um efeito indireto decorrente do funcionamento da hidrelétrica. Segundo a bioquímica, como o reservatório se formam lagoas (como bolsões de água), onde o líquido fica retido até por 130 dias ao ano. Isso pode gerar com as chuvas e invasão da floresta, a mistura de decomposição de matéria orgânica que com a incidência de luz solar resulta no final, na liberação de mercúrio inorgânico ingerido por peixes e outros . Esse, por sua vez, sofre a ação de bactérias anaeróbicas e se transforma em metilmercúrio. O que é mais surpreende neste processo é que outros estudos já têm alertado para este tipo de problema, e não é de hoje. Entre eles, do biólogo Philip Fearnside, há duas décadas.
Há dois anos, foi exposta mais uma análise que levantou contaminação por mercúrio na Amazônia. Pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) analisaram em 2014 amostras de fios de cabelo de 239 indígenas yanomami e ye’kuana , no estado de Roraima. Em algumas regiões, 92% da população estava contaminada. O contexto, neste caso, era de ação garimpeira ilegal na região, uma pressão que os indígenas já têm alertado há anos e exigem uma ação do poder público. Para a extração do ouro, eles utilizam o mercúrio para poder identifica-lo, o separando dos demais sedimentos. A pesquisa foi feita em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA). Os resultados foram encaminhados aos órgãos competentes, como também à relatoria especial sobre Direitos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU).
Conexões com um mercado exterior também fazem parte da cadeia desta problemática. Em maio deste ano, houve a apreensão de mais de 1,7 tonelada de mercúrio pela Receita Federal e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), em Santa Catarina. Este material era proveniente da Turquia e seguiria para garimpos na Amazônia.
O que se vê é uma cadeia de âmbito internacional, que exige profundidade de ações, que já têm retaguarda jurídica e legal para tanto. Deixar de dar o devido peso a esta agenda pode ter um custo muito alto para o país, que se intitula um país em desenvolvimento, com protagonismo na política internacional.
* Sucena Shkrada Resk é jornalista, formada há 26 anos, pela PUC-SP, com especializações lato sensu em Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional, pela FESPSP, e autora do Blog Cidadãos do Mundo.
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Imagem: garimpo no limite nordeste na TI Kayapo – Instituto Socioambiental / Divulgação
Fonte: https://racismoambiental.net.br/2018/08/15/o-mercurio-nas-veias-da-amazonia/
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