Em cinco anos, De Olho nos Ruralistas produziu infográficos, cartografias e séries de reportagens mostrando a política de violência contra os Guarani Kaiowá, Terena e Kadiwéu; estado é berço de líderes ruralistas, como a ministra da Agricultura, Tereza Cristina

Por Bruno Stankevicius Bassi

Helicópteros, milícias privadas, despejos ilegais, assassinatos. Desde sua fundação, em 2016, De Olho nos Ruralistas reportou dezenas de casos de violência contra os povos indígenas do Mato Grosso do Sul. Um ciclo contínuo de violações de direitos humanos que extrapola as fronteiras brasileiras e avança sobre comunidades no Paraguai.

O Mato Grosso do Sul encerra a retrospectiva de cinco anos do De Olho nos Ruralistas. Desde setembro, iniciamos esta trajetória relembrando os conteúdos mais relevantes produzidos pelo observatório em cada uma das 27 unidades da federação. A região Centro-Oeste foi a última a ser retratada, com GoiásDistrito Federal e Mato Grosso.

Os primeiros estados foram os do Sul: Rio Grande do SulSanta Catarina e Paraná. Depois foi a vez do Sudeste, pela ordem: São PauloMinas GeraisRio de Janeiro e Espírito Santo; do Nordeste: BahiaSergipeAlagoasPernambucoParaíbaRio Grande do NorteCearáPiauí e Maranhão; e do Norte: Pará AmapáAmazonas, RoraimaAcreRondônia e Tocantins.

Não é por acaso que a retrospectiva se encerra nesta região. Falar do processo de expulsão e concentração de terras no Mato Grosso do Sul é também falar da formação histórica do Brasil agrário. De suas desigualdades e injustiças. E do martírio dos povos indígenas e camponeses em busca de seu espaço vital. Mas também de uma expansão do agronegócio para o oeste — rumo até a outros países da América do Sul.

O estado foi um dos mais retratados pelo observatório ao longo destes cinco anos, sendo o primeiro a contar com uma correspondente fixa, ainda em 2017, e tema de uma série especial, vencedora do edital de Jornalismo Investigativo do Fundo Brasil de Direitos Humanos.

ESPECIAL MOSTROU RELAÇÃO DE POLÍTICOS COM GENOCÍDIO

Lançado em 2018, durante o 24ª Encontro Nacional de Geografia Agrária, em Campo Grande, o projeto De Olho no Mato Grosso do Sul trouxe histórias sobre os interesses em jogo por trás dos conflitos no campo no estado. Durante um ano, o observatório pesquisou as conexões entre a violência contra os povos indígenas e o agronegócio, estudando a face política, jurídica e empresarial da disputa pelos territórios tradicionais das etnias Guarani Kaiowá, Terena, Guarani Ñandeva e Kadiwéu.

Em um levantamento inédito na mídia brasileira, De Olho nos Ruralistas identificou 78.386 hectares em terras nas mãos de 58 políticos sul-mato-grossenses. Os dados foram apresentados em um mapa interativo, onde o leitor pode explorar, município a município, as terras declaradas por prefeitos, vice-prefeitos, deputados e senadores: “MS tem 1.351 hectares por político e apenas 1 hectare para cada Guarani Kaiowá“.

Entre os políticos retratados — e seu posicionamento contra os indígenas — estiveram a senadora e pré-candidata do MDB à presidência em 2022 Simone Tebet; o ex-ministro da Saúde de Bolsonaro Luiz Henrique Mandetta (DEM), que participou de ataque à TI Ñande Ru Marangatu que culminou na morte do líder indígena Simeão Vilhalva; o antigo braço direito de Michel Temer, Carlos Marun; o senador Dagoberto Nogueira (PDT), autor de proposta que autoriza cassinos em terras indígenas; e a ministra da Agricultura Tereza Cristina.

Artífice do apoio da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) a Bolsonaro em 2018, enquanto presidia a bancada, Tereza se elegeu para a Câmara com o apoio de Jacintho Honório da Silva Filho, acusado de mandar matar o cacique Marcos Veron. Tanto ele quanto o filho doaram para as campanhas da deputada, em 2014 e 2018.

Dona da Fazenda Brasília do Sul, em área reivindicada pela etnia Guarani Kaiowá, a família Jacintho e suas conexões internacionais são tema de um relatório produzido pelo De Olho nos Ruralistas em parceria com a ONG britânica Earthsight, que será lançado em 2022.

DO MS AO PARAGUAI, FAZENDEIROS EXPANDEM TENTÁCULOS

Uma dessas conexões se dá pelos genros de Jacintho Honório da Silva. Marcelo Bastos Ferraz e Gino de Biasi Neto foram dois dos personagens retratados no projeto De Olho no Paraguai, uma série de 36 reportagens contando quem são os brasileiros que controlam boa parte do território paraguaio.

Mapa De Olho na Fronteira mostra conflitos envolvendo fazendeiros no Mato Grosso do Sul e Paraguai. (Imagem: De Olho nos Ruralistas)

Dono da empresa Yaguareté Porã, Ferraz possui 79 mil hectares no país vizinho, dos quais boa parte está sobreposta ao território dos Ayoreo Totobiegosoe, o único povo indígena isolado fora da Amazônia. Acusada de desmatar 1,2 mil hectares, a empresa recebeu da ONG Survival o Prêmio de Melhor Lavagem de Imagem Ecológica, por “disfarçar de forma sistemática a destruição de grande parte da floresta dos indígenas como se fosse um nobre gesto de conservação”.

Biasi, por sua vez, é dono de duas empresas que, juntas, destruíram 4 mil hectares no Chaco paraguaio. Bem relacionado, o empresário paulista tem como sócio um corretor de terras cuja lista de clientes inclui a ex-atriz global — e ex-secretária da Cultura de Bolsonaro — Regina Duarte. Ela, por sua vez, também se relaciona com os conflitos por terras no Mato Grosso do Sul, onde já atuou como garota-propaganda contra os indígenas: “Histórico pecuarista de Regina Duarte inclui apoio a fazendeiros contra indígenas no MS: “Voltei a sentir medo”

Esse tipo de “efeito espelho” — latifundiários com terras e conflitos nos dois lados da fronteiras — deu origem a outro desdobramento. Em 2019, De Olho nos Ruralistas publicou um mapa físico intitulado De Olho na Fronteira, traduzindo o fenômeno em linguagem cartográfica.

PERSEGUIÇÃO AOS POVOS DO CAMPO OCORRE EM VÁRIOS NÍVEIS

Ao longo destes cinco anos, não faltaram exemplos de políticos envolvidos em ataques aos direitos de indígenas no Mato Grosso do Sul. Do governador Reinaldo Azambuja aos prefeitos, são dezenas de casos. Relatamos alguns deles em 2016: “Algozes de indígenas no MS tentam eleição no dia 2 de outubro“. Em 2018: “Um só prefeito tem mais hectares que terra indígena em disputa no MS“. E em 2020: “Prefeitos multados por desmatamento do Pantanal se reelegem com folga no Mato Grosso do Sul“.

Mas a ofensiva contra os Guarani Kaiowá, Terena, Guarani Ñandeva e Kadiwéu não se dá apenas na esfera política. O Judiciário também é uma esfera agressiva à presença indígena, seja pelo favorecimento explícito a fazendeiros, como no caso do Massacre de Caarapó, seja na omissão contínua: “Idoso Guarani Kaiowá, diabético e depressivo, aguarda decisão do STF sobre habeas corpus“. Ou no conflito direto de interesses, caso do desembargador Luiz de Lima Stefanini, do TRF-3, que possuía fazendas nas terras indígenas Limão Verde e Taunay-Ipegue, em Aquidauana.

Enquanto isso, as tentativas de criminalização avançam. Em 2017, De Olho nos Ruralistas mostrou como a CPI do Incra e da Funai serviu de laboratório de testes para a perseguição a indigenistas e servidores públicos, em sua maioria no Mato Grosso do Sul. O envolvidos no Leilão da Resistência — evento ocorrido em 2013 em Campo Grande, quando produtores do Estado arrecadaram R$ 640 mil para resistir, inclusive com armas, contra as ações de indígenas e camponeses — continuam ditando as cartas no estado.

INDÍGENAS ENFRENTAM PANDEMIA E POLÍTICA ASSASSINA DE BOLSONARO

A violência contra os indígenas no Mato Grosso do Sul não começou com Bolsonaro. Mostramos isso nos primeiros anos do observatório: “Presidente da Funai quer “exploração de riquezas” em terras indígenas“. Diante da eleição do militar, as ameaças ganharam novos contornos.

Indígenas ocuparam Polo Base de Saúde de Dourados para denunciar perseguição de profissionais. (Foto: Reprodução)

Dos 113 indígenas mortos em 2019, primeiro ano de governo Bolsonaro, 40 eram sul-mato-grossenses. No mesmo período, as invasões a terras indígenas dobraram, começando da “comemoração” pela vitória eleitoral da extrema-direita, com direito a ataque contra um acampamento do MST e quinze feridos em retomada Guarani Kaiowá: “Ameaças e ataques a indígenas e sem-terra marcam fim de semana da vitória de Bolsonaro“.

Com a chegada da Covid-19 às aldeias, um novo medo passou a rondar os indígenas. De Olho nos Ruralistas alertou sobre a situação de “apartheid sanitário” desde o início, o que veio a se concretizar com o avanço do coronavírus entre os Terena: “Seis Terena morrem com sintomas de Covid-19 após inauguração de estrada com prefeito e deputados“.

Em maio de 2021, frente à nova escalada de casos, o Ministério da Saúde implodiu a equipe que reduziu mortalidade indígena em Dourados. Mas houve resistência: “Nomeado por Pazuello, coordenador de saúde indígena do MS é exonerado após mobilizações“.

A luta é contínua para os povos do campo no estado e também é tema permanente no observatório. Seja nas retomadas e ocupações, na preservação da biodiversidade, no diálogo de saberes ou no intercâmbio entre indígenas e camponeses.

EM CINCO ANOS, OBSERVATÓRIO EXPÕE OS DONOS DO BRASIL

A comemoração dos cinco anos do De Olho nos Ruralistas traz ainda várias peças de divulgação, visando a obtenção de mais 500 assinaturas, por um lado, e levar as informações a um público mais amplo, por outro. É urgente a necessidade de o país conhecer melhor o poder dos ruralistas e de formar no Congresso uma bancada socioambiental, um conjunto de parlamentares que defendam direitos elementares, previstos na Constituição e nos pactos civilizatórios internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Assista ao vídeo do aniversário:

No dia 14 de setembro, inauguramos a versão audiovisual da editoria De Olho na Resistência, que divulga informações sobre as iniciativas dos povos do campo e as alternativas propostas para o ambiente e a alimentação saudável. Você pode apoiar o observatório aqui.

Bruno Stankevicius Bassi é repórter e coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |

Imagem principal (Luiz Vasconcelos/Folhapress): despejos violentos são uma das faces do genocídio perpetrado contra o povo Guarani Kaiowá

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Fonte: https://deolhonosruralistas.com.br/2021/12/31/mato-grosso-do-sul-se-consolida-como-simbolo-do-genocidio-indigena/

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