Formato de documentário de Vicente Ferraz exige paciência e alguma tenacidade do público, mas o esforço é recompensador
Cena do filme ‘O Contato’, de Vicente Ferraz – Divulgação
Um dos grandes clichês sobre povos indígenas que passaram a ter contato com os “brancos” há poucas décadas é que eles seriam representantes de uma cultura da idade da pedra invadida de repente pelo mundo moderno.
“O Contato”, documentário que retrata o cotidiano multiétnico de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, mostra que essa imagem é uma simplificação grosseira. O resultado de tais contatos é a interpenetração de um grande número de fatias de tempo histórico e mítico. Não são dois mundos que se chocam, mas uma espécie de multiverso que eclode.
Para contar essa história, a moldura narrativa da produção dirigida por Vicente Ferraz é a de três jornadas paralelas, percorrendo longas distâncias de barco. Uma professora indígena da etnia arapaso viaja para a cidade para cuidar de sua filha, que tem depressão; um casal interétnico, formado por membros das etnias hupda e baniwa, vai apresentar seu filho para a parentela hupda; um grupo de yanomamis leva um filme sobre eles para ser exibido na aldeia.
A grande distância das viagens pela bacia do rio Negro dita o ritmo vagaroso das cenas —até porque se trata do terceiro maior município do Brasil, com quase 110 mil quilômetros quadrados de área, o equivalente a cerca de cem vezes a da capital paulista.
Quase todas as conversas retratadas estão em diferentes idiomas indígenas, com legendas, e o ouvinte mais atento talvez consiga captar alguns indícios de como elas são diferentes entre si.
Pelo fato de pertencerem a famílias linguísticas totalmente distintas, com vários milênios de evolução paralela que as separam, a diferença entre o hup —dos hupda— e o baniwa, ou entre o falar dos yanomami e o tukano —uma das línguas francas da região—, é equivalente à que existe entre o árabe e o alemão, ou entre o chinês e o finlandês.
Em parte pela língua, em parte pelas diferenças de costumes, os hupda tinham raros contatos com outras etnias no passado, o que faz com que casamentos mistos ainda pareçam novidade para eles.
Sons e legendas, porém, deixam claro que essa diversidade linguística é só um pedaço do que existia no passado. Os arapaso, por exemplo, perderam seu idioma original e acabaram adotando o tukano por conta dos desastres demográficos que sofreram após o contato com a sociedade não indígena —a professora da etnia ainda se recorda de parentes mais velhos que falavam um pouco da língua original.
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Pessoas de meia-idade ou idosos de diversos grupos locais também se lembram do tempo que passaram em internatos geridos por missionários católicos durante o século 20, e essas lembranças também estão entremeadas por fósseis linguísticos —em meio ao fluxo de palavras indígenas, ouve-se “merendar”, “tabuada” e “castigo”, que consistia em parte justamente em não poder “merendar”.
Um catolicismo cujos fiéis têm quase sempre feições indígenas, embora cantando músicas religiosas que podem ser ouvidas nas missas de qualquer outro lugar Brasil afora, é um dos legados da política de “integração” e dos internatos, ainda que convivendo com o uso de rapé psicoativo no xamanismo de grupos como os yanomami. Bem mais sinistra é a memória do impacto do ciclo da borracha sobre os grupos da região.
Os desmandos de fazendeiros, seringueiros e grandes comerciantes, que submeteram os indígenas do rio Negro à escravidão já no século 20 e cometeram chacinas, ficaram preservadas numa espécie de mitologia sobre a figura do “Manduka”, um desses intrusos, que teria adquirido poderes sobrenaturais —um Drácula amazônico.
É possível que o impacto das cenas fosse ainda maior se, além das vozes indígenas, a narrativa contextualizasse de forma mais didática as diferentes camadas históricas e culturais que conectam seus personagens. O formato, como está, exige paciência e alguma tenacidade do público. Mas o esforço é recompensador.
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