Senado do país aprovou moção sobre o tema proposta pela senadora Pauline Hanson, do One Nation

Mayara Paixão

GUARULHOS

Na esteira dos EUA, onde mais da metade dos estados discute projetos para limitar o debate racial em sala de aula, a Austrália viu o tema ganhar espaço em seu Legislativo. No mês passado, o Senado do país aprovou, por 30 votos a 28, uma moção para que o governo federal “rejeite a teoria crítica da raça no currículo nacional”.

A medida vem no momento em que o país revisa o conteúdo do currículo escolar, que estabelece os conhecimentos e as habilidades a serem ensinados a todos os alunos da educação básica.

Feita a cada seis anos, a revisão é coordenada por um órgão independente, a Autoridade de Avaliação do Currículo (Acara, na sigla em inglês), que formula o documento ao lado de professores e especialistas, mas também passa por outras duas etapas fundamentais: uma consulta pública, que terminou em 8 de julho, e o aval dos ministros da Educação a nível federal, estadual e municipal.

O principal ponto de debate está na forma como o currículo revisado pretende falar sobre a colonização britânica no território australiano —iniciada na segunda metade do século 18— e as consequências desse processo para os povos indígenas.

O novo documento traz com maior ênfase trechos que abordam a colonização sob a ótica dos indígenas, em especial na revisão de história. São passagens como a que diz que se deve investigar “a destruição de estilos de vida e culturas, as guerras de fronteira, o genocídio, e como os impactos da colonização são vistos como uma invasão na perspectiva de muitos indígenas australianos”.

Há também tópicos que exploram o desenrolar dessa violência nas instituições do país, como o que elenca o estudo do “pano de fundo e das causas da luta dos indígenas australianos por direitos e liberdade, como a legislação e as políticas discriminatórias”.

Outro trecho diz ainda que é preciso estudar a disputa sobre o feriado de 26 de janeiro. Nacionalmente, a data é comemorada como o Dia da Austrália, uma alusão ao dia em que as primeiras frotas britânicas desembarcaram no país em 1788. Os povos indígenas questionam esse título e, desde 1938, o chamam de Dia do Luto —referência aos massacres cometidos pelos colonizadores.

Esse tipo de reflexão incomodou a ultradireita australiana. A moção aprovada durante votação apertada em 21 de junho foi proposta pela senadora Pauline Hanson, do One Nation (nação única), legenda conhecida pela defesa de políticas xenofóbicas e anti-imigração.

A proposta de novo currículo não traz nenhuma referência literal à teoria crítica da raça, referida na moção. Criada em meados da década de 1980 nos EUA, ela é uma escola de pensamento jurídico fundada por professores negros e latinos para estudar como o racismo permeia a lógica das instituições e torna-se estrutural, interferindo na vida dos cidadãos mesmo quando não há um ato claro de discriminação.

Hanson tem usado as redes sociais para se manifestar contra o debate racial nas escolas. Em uma publicação no Facebook em 15 de junho, escreveu: “É por causa da teoria crítica da raça que temos termos como ‘racismo sistemático’ e ‘privilégio branco’. É por causa dela que crianças australianas têm sido humilhadas publicamente por serem brancos opressores”.

Ela também tem sido convidada para falar em programas de TV sobre o tema. Em 16 de junho, durante entrevista ao canal Sky News, Hanson disse que é sua prioridade banir a teoria crítica da raça das escolas. Acrescentou que os EUA servem de exemplo e contou ainda com o apoio do apresentador do programa, Alan Jones. Quando a senadora disse que “as pessoas acham que isso não é preocupante, mas é”, Jones emendou: “É claro que é”.

Para Alana Lentin, professora da Universidade do Oeste de Sydney e ex-presidente da Associação Australiana de Estudos Críticos de Raça e da Branquitude, o escopo da moção pode estar na teoria crítica, mas o real objetivo é se opor a quaisquer símbolos do movimento antirracista. “É algo simbólico, com o objetivo de se somar ao movimento global contra a teoria crítica da raça”, diz. “E Pauline Hanson quer se posicionar como uma das maiores articuladoras da extrema direita.”

Não é certo se o governo fará alguma movimentação para limitar os debates raciais. Senadores da coalizão conservadora que governa o país, porém, apoiaram em peso a moção.

Na sessão que votou o texto, o senador Jonathon Duniam, do Partido Liberal da Austrália —a sigla de centro-direita do primeiro-ministro Scott Morrison—, alegou que o governo vetaria quaisquer trechos do novo currículo que estivessem baseados no que diz a teoria crítica da raça. “Essa teoria é baseada na crença de que as leis e as instituições da nossa nação são inerentemente racistas”, disse.

A senadora Mehreen Faruqi, do Partido Verde —que se opôs à pauta, ao lado dos trabalhistas—, afirmou que aquilo sobre o que se falava não era a teoria crítica da raça e que veículos da mídia australiana, como Fox News e Sky News, contribuíam para essa desinformação. “Nós não vamos parar de lutar contra o racismo sistemático e pelas pessoas marginalizadas e discriminadas”, acrescentou.

Além do apoio da coalizão do governo, outros acenos chamam atenção. Em abril, quando a primeira versão do novo currículo tornou-se pública, o ministro da Educação, Alan Tudge, também do Partido Liberal, afirmou estar preocupado. “Acho que devemos honrar a história indígena e ensiná-la, mas isso não deve ser feito às custas da desonra da nossa herança ocidental, que nos fez a democracia liberal que somos hoje”, disse em entrevista ao Sky News. O ministro também afirmou que buscará costurar mudanças nesses pontos.

Alana Lentin, da Universidade do Oeste de Sydney, diz que o novo currículo avança não por incluir a história indígena, mas por abordar como os educadores devem ensiná-la. “Da forma como está o documento hoje, fica a critério do professor, e muitos ensinam a história da colonização apenas sob a perspectiva dos colonizadores.”

“Muitas vezes os alunos são ensinados sobre os aborígenes com uma imagem selvagem e primitiva, sem falar sobre as guerras de fronteira, os massacres, ou mesmo sobre as leis, os costumes e a política aborígene”, diz. “Nada disso é ensinado a menos que você tenha a sorte de ter um professor que pense que isso é importante.”

Hoje a Austrália tem cerca de 798.400 indígenas —3,3% da população—, segundo dados da agência nacional de estatísticas. Eles estão divididos entre os povos aborígenes, que vivem na Austrália continental, e os povos das Ilhas do Estreito de Torres, arquipélago que faz parte do estado de Queensland, no nordeste do país.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/07/na-esteira-dos-eua-direita-australiana-tenta-proibir-teoria-critica-da-raca-nas-escolas.shtml

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