“Se não for pela mobilização da sociedade civil, a gente vai continuar testemunhando um cenário cada dia mais devastador”, relata Thyara Pataxó

Thyara Pataxó tem 30 anos, é liderança do povo Pataxó da aldeia Novos Guerreiros, uma das cinco na Terra Indígena Ponta Grande, sul da Bahia. Neste depoimento, ela relata as dificuldades enfrentadas pelos parentes atingidos pelas fortes chuvas nos últimos meses. E conta como as ações protagonizadas por jovens indígenas foram fundamentais para levar ajuda emergencial às famílias mais impactadas, que seguem sendo negligenciadas pelo poder público

Thyara é estudante de agroecologia, mãe de Hywnatã, 9 anos e Werinahy, 3 anos e meio. O território onde vive ainda não é demarcado. Os Pataxó das cinco comunidades (Nova Coroa, Itapororoca, Mirapé, Novos Guerreiros e Txihikamayurá) vivem sem acesso a direitos básicos como luz e água potável, uma situação que se agravou com a chegada da pandemia de Covid-19, e mais recentemente com os eventos extremos, que têm se tornado mais intensos e frequentes no Brasil e no mundo em consequência da crise climática. 

Ao ter seus direitos e de seu povo violados diariamente, lutar e resistir seria uma trajetória quase impossível de não ser traçada. Pela permanência no território, por sua cultura, sua vida e de sua comunidade. E hoje é por esse caminho que Thyara costura seus passos.

Leia a seguir o relato de Thyara Pataxó em depoimento à Camila Doretto.

Aqui no Território Ponta Grande vivem por volta de 1000 famílias. Cerca de 120 foram as mais afetadas, moradoras das comunidades Novos Guerreiros, Nova Coroa e Mirapé, onde o maior número de pessoas perdeu suas casas ou então a chuva entrou e alagou tudo. 

As comunidades vivem principalmente da venda de artesanato (que já havia sido prejudicado com a chegada da pandemia) e, com essas chuvas, o comércio parou completamente. As pessoas ficaram muito necessitadas de algum recurso, de alguma forma de ajuda, e foi aí que a gente resolveu se unir através de uma rede de juventudes. 

A rede foi formada por representantes da Associação Jovens Indígenas Pataxó (AJIP), do Conselho de Juventude Pataxó da Bahia (CONJUPAB) e outras associações, conselhos e grupos de jovens daqui do território, localizado entre Coroa Vermelha e Santa Cruz de Cabrália, como MUP, SARÃ E IPAKEY. Nós nos unimos para pensar a melhor forma de atender às demandas das comunidades que estavam sofrendo com as chuvas, tanto dentro do território como ribeirinhos que vivem na região. 

Todas as pessoas no território foram afetadas direta ou indiretamente. Mas algumas famílias foram muito mais impactadas e perderam todos os seus bens, que não são bens em grande quantidade, são coisas básicas para que vivam com um pouco de dignidade como colchão, fogão, geladeira, sofá, essas coisas. E hoje eles estão na luta para conseguir tudo novamente. 

Através da nossa rede conseguimos doações de roupas e, pelas redes sociais, fizemos uma arrecadação para comprar cestas básicas, colchões, cobertores, panelas e pratos. A gente tentou fazer com que essas pessoas tivessem um pouco de esperança. 

Se não for pela mobilização da sociedade civil, se a gente não se articular enquanto juventude, moradoras e lideranças, parentes que somos, para tentar trazer um pouco de dignidade às famílias dentro do território, a gente vai continuar testemunhando um cenário cada dia mais devastador, de pura miséria e de puro caos. Registros da ação humanitária promovida pela rede de juventude indígena no sul da Bahia na T.I. Ponta Grande e arredores, em janeiro de 2022. (Arquivo pessoal de Thyara Pataxó)

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No ano passado, a gente sofreu um processo que proibiu a “implantação de serviços básicos de qualquer natureza” no território. Essa liminar se estende até hoje* e continua afetando diretamente a vida de pessoas já impactadas pela pandemia e agora, pelas fortes chuvas, pois ficamos sem acesso a um recurso básico e fundamental para nossa sobrevivência que é água limpa e potável. 

Na comunidade Novos Guerreiros, onde eu moro, com mais 200 famílias, se a gente quiser beber um pouco de água potável tem que sair da comunidade. Muitos dos anciãos não estão tendo mais força para fazer essa caminhada e são obrigados a beber a água que nós chamamos de água amarelada (retirada dos poços artesianos). Com as chuvas (e falta de saneamento básico), ficamos com áreas de esgoto aberto que acabam contaminando os poços. Já fizeram análise dessa água e foi constatado que ela contém alto teor de ferro, o que é muito perigoso para a nossa saúde.  

Nós lutamos todos os dias para trazer o mínimo de dignidade para essas famílias.

Como articuladora dessa rede de jovens, mobilizadora, liderança, mulher e mãe, eu tenho muito o que pensar e dizer sobre as soluções necessárias para a região, assim como as pessoas mais afetadas também têm. 

Neste momento, é urgente melhorar a questão de infraestrutura dentro das comunidades indígenas. Muitas sequer possuem rede de esgoto, de água, rede elétrica e isso tudo faz com que a gente viva às margens da miséria. Infelizmente, este é um cenário que se perpetua por anos na história dos povos indígenas do Brasil. 

É urgente que o governo tenha um olhar mais sensível para os povos indígenas, respeitando as nossas dinâmicas, cultura e os nossos modos de viver; que ele garanta aos nossos povos direitos essenciais à vida.

A cada dia que passa a gente está vendo as mudanças climáticas acontecendo, muita coisa acontecendo com a mãe natureza, e a culpa não é da natureza, nem dos rios, mas sim nossa. Nós, seres humanos, que visamos aumentar nosso capital, só ganhar, ganhar, ganhar, retirar recursos naturais da natureza e nunca repor. 

Infelizmente, sabemos que o governo atual só quer que ele e os seus cresçam e se fortaleçam. Para as minorias, eles olham com menosprezo. Mas a gente está aqui pra lutar, né? A gente já vem resistindo há muito mais de quinhentos e vinte anos. Não vai ser agora que a gente vai desistir.


*Na prática, a liminar impede que o território faça melhorias em pontos de energia — já precários — ou obras de saneamento básico. Com as chuvas, as poucas instalações elétricas deixaram de servir para o uso de eletrodomésticos como geladeira, por exemplo, fundamental para o armazenamento dos alimentos.

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/07/no-dia-nacional-de-luta-dos-povos-indigenas-escritora-macuxi-defende-que-literatura-e-ativismo

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