Em identificação desde 2004, a TI segue aguardando sua homologação há 19 anos. Território está situado na Bacia do Xingu, entre os estados do Mato Grosso e Pará
Mariana Soares – Jornalista do ISA
Funai reconhece Terra Indígena Kapôt Nhinore, na qual o Cacique Raoni passou a juventude 📷 Kamikia Kisêdjê/Amazônia Real
No dia 28/7, durante o evento “Chamado de Raoni”, na aldeia Piaraçu (MT), Joênia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ao lado de Sônia Guajarara, ministra dos Povos Indígenas, anunciou a aprovação dos estudos de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, onde o cacique Raoni Metuktire passou sua juventude.
Localizada entre os municípios de Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, no Mato Grosso, e São Félix do Xingu, no Pará, a Terra Indígena possui uma área aproximada de 360 mil hectares e é lar dos povos Mebengôkre Metyktire; e Yudja.
A partir da aprovação, em até 90 dias após a publicação no Diário Oficial da União, a Funai passa a aceitar contestações, mediante a apresentação de provas. Ao fim deste prazo, a Funai tem 60 dias para desenvolver pareceres técnicos sobre as reivindicações apresentadas e encaminhar para o Ministério da Justiça.
Com a volta da atribuição de declarar e demarcar as Terras Indígenas para o Ministério da Justiça, segundo o 10º artigo do decreto 1.775/1996, o ministério teria um prazo de 30 dias para expedir a portaria declaratória. Na prática, contudo, esse prazo pode ser bem maior. Quase metade das 46 terras indígenas que se encontram com estudos aprovados pela Funai hoje aguardam a mais de 10 anos pela edição de uma portaria declaratória pelo Ministério da Justiça e há casos de 30 anos de espera.
Por fim, TI segue para homologação com a assinatura do Presidente da República para garantir o pleno direito territorial aos povos que ali habitam.
A Terra Indígena Kapôt Nhĩnore
A TI Kapôt Nhĩnore está situada na bacia do Xingu, na transição entre os biomas cerrado e amazônico, e sua localização vai de encontro às adjacências das Terras Indígenas Menkragnoti e Capoto/Jarina.
Segundo o resumo do Relatório de Identificação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, a história registrada da TI remonta à Expedição Roncador-Xingu, chefiada pelos Irmãos Villas-Boas a partir de 1945.
“Criada para conhecer os espaços ainda em branco no mapa, dela decorre o contato com diversos povos indígenas, o deslocamento de muitos deles, e a criação do Parque Indigena do Xingu. Estabelecido durante o mandato do então presidente Jânio Quadros, o Parque, em seu anteprojeto original, compreendia uma área dez vezes maior, e seus limites oficiais, que abarcavam a TI Kapôt Nhinore, foram modificados em 1968 e 1971, por decretos dos generais Costa e Silva e Garrastazu Médici, respectivamente”, afirma o relatório.
Apesar dos estudos de identificação terem começado apenas em 2004, as reivindicações pela área datam desde a década de 1980, de acordo com os processos das TIs adjacentes, habitadas por outros subgrupos Mebêngôkre.
Sobre a presença de ocupações não-indígenas na TI, segundo o resumo do Relatório de identificação, existem 201 ocupações, sendo 153 desses ocupantes caracterizados como “proprietários”, 32 como “posseiros” e 16 “sem informação”. Segundo o SIGEF, o Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para gestão das informações georreferenciadas dos limites dos imóveis rurais, existem registrados 144 imóveis sobrepostos à TI, cobrindo 74,5% de sua extensão, num total de 265.460 hectares.
Quando isso ocorre, de acordo com o parágrafo 6 do artigo 231 da Constituição Federal, os títulos de propriedade rural são anulados e extintos, por incidirem sobre uma Terra Indígena. Já as ocupações de boa-fé, por sua vez, são asseguradas por meio de uma indenização pelas benfeitorias realizadas.
Além disso, o Parque Estadual Xingu, se encontra completamente sobreposto pela parte sul da TI e corresponde a cerca de 25% dela. O Parque Estadual (PES) do Xingu foi criado através do Decreto 3.585/2001, como parte do conjunto de Unidades de Conservação do Mosaico da Terra do Meio. Inicialmente, o Parque abrangia uma área de aproximadamente 134.463 hectares. Dois anos depois, entretanto, a Lei 8054/2003, assinada pelo governador do Estado na época, Blairo Maggi, reduziu a área para 95.024 hectares.
Sobreposições de Terras Indígenas com Unidades de Conservação, como é o caso da TI Kapôt Nhĩnore com o PES do Xingu, não são incomuns e tampouco representam uma ameaça ao meio ambiente. Afinal, segundo estudo do ISA, povos indígenas e populações tradicionais são responsáveis por proteger um terço das florestas no Brasil.
Por outro lado, mesmo sendo uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, 92,7% do PES estão sobrepostos por propriedades rurais, segundo o SIGEF. Ou seja, parte dos imóveis rurais que estão sobrepostos à TI já eram sobrepostos a uma Unidade de Conservação de Proteção Integral.
Pressões e ameaças
Os Mebengôkre e os Yudja enfrentam há anos disputas por sua Terra, com diversos empreendimentos instalados irregularmente impulsionando a caça e a pesca predatória e indiscriminada.
Não obstante, os próprios municípios em que a TI está localizada acrescentam empecilhos para sua demarcação. Em 2017, por exemplo, a Advocacia-Geral da União (AGU) precisou intervir em uma ação do Município de São Félix do Xingu que buscava travar os estudos de identificação da área.
Segundo o Ministério Público Federal, a lentidão no processo se dá justamente por esse histórico de pressões, aliado à falta de empenho da Polícia Federal em coibir esse tipo de interferência. A ação cível pública impetrada na justiça pelo MPF em 2016 destaca que “no âmbito da administração pública federal, o principal óbice à garantia dos direitos territoriais das etnias Kayapó e Juruna é o descaso da Polícia Federal”.
Chamado de Raoni
O encontro em que a aprovação do estudo foi anunciada aconteceu em São José do Xingu, na Terra Indígena Capoto/Jarina, no Xingu. Respondendo ao chamado do Cacique Raoni pela urgência de ações pela demarcação de Terras Indígenas, para redução dos impactos das mudanças climáticas e pela partilha de saberes ancestrais, o encontro de cinco dias reuniu mais de 800 indígenas de diversos povos.
Além da presença da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e da presidente da Funai, Joenia Wapichana, o “Chamado de Raoni” também contou com o secretário nacional de Saúde Indígena, Weibe Tapeba. A presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva também era esperada, mas um procedimento no quadril impediu a ida ao evento.
Ao final, uma carta assinada por todas as lideranças reunidas trouxe um alerta para o futuro. “Nossos ancestrais há muitos anos vêm avisando que a saúde da terra não é responsabilidade só nossa, ela é responsabilidade de todos, se o céu cair, a terra incendiar e as águas subirem, todos nós iremos morrer. Não há dinheiro que compre outro planeta”.
Comentários