Placar agora está em 2×1 contra interpretação ruralista. Processo decisivo para Terras Indígenas deve ser retomado a partir de agosto no STF

Ester Cezar – Jornalista do ISA

@estercezaar 

Carolina Fasolo – Jornalista do ISA

(E-D) O secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas, Eloy Terena, a ministra Sonia Guajajara, e a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) acompanham a sessão do STF 📷 Carlos Moura / SCO / STF

O ministro Alexandre de Moraes manifestou-se contra a tese do “marco temporal”, nesta quarta-feira (7), na retomada do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que decide o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs). Ele acompanhou quase integralmente o voto do relator, Edson Fachin.

“A opção nua e crua pelo marco temporal é uma opção pela segurança jurídica, mas isso não garante a paz social”, defendeu Moraes. “[Se formos aplicá-lo], estaríamos ignorando totalmente os direitos fundamentais das comunidades indígenas proclamados pela Constituição”, afirmou.

O ministro divergiu de Fachin, porém, em relação a como devem ser tratados os casos de proprietários de áreas formalmente reconhecidas como indígenas. Para Moraes, se for comprovado que a comunidade estava na terra em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição), o proprietário deve ser indenizado apenas pelas benfeitorias, como prevê a Carta Magna hoje. Se a posse indígena não for atestada nessa data, mas em outra, a indenização deverá abranger também a terra nua. 

O ministro também propôs que uma população originária possa optar por outro território, que não o de ocupação tradicional, desde que com a sua “expressa concordância”. A regra não existe na legislação atual. Além disso, segundo a Constituição, as TIs são “indisponíveis” (confira os 10 pontos da “tese” de Moraes no box ao final da reportagem). 

Após a manifestação de Moraes, o ministro André Mendonça pediu “vistas”, ou seja, mais tempo para analisar o processo, suspendendo-o. O julgamento deve ser retomado a partir de agosto, após o recesso do Judiciário. Mendonça sinalizou que pretende devolver o caso ao plenário dentro do período regimental de 90 dias, “num prazo comum e que nós estabeleçamos”. Ele chegou a defender o “marco temporal” na mesma ação, atuando como advogado-geral da União do governo Bolsonaro.

O placar agora está em dois votos contra, de Fachin e Moraes, e um voto a favor da tese, do ministro Nunes Marques. Ainda faltam votar, nessa ordem: Mendonça, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. 

O julgamento começou em agosto de 2021 e estava suspenso desde setembro do mesmo ano, quando Moraes pediu “vistas”. A análise do caso já foi incluída e retirada da pauta do STF cinco vezes.

O “marco temporal” é uma tese ruralista que busca restringir os direitos dos povos originários. De acordo com ela, só poderiam ser oficialmente reconhecidas as terras por eles ocupadas em 5 de outubro de 1988. Alternativamente, teriam de provar a existência de disputa judicial ou conflito pela área na mesma data, o chamado “renitente esbulho”. 

A interpretação legaliza e legitima violências e expulsões sofridas por essas populações. Também ignora que elas eram tuteladas pelo Estado e não tinham autonomia para acionar a Justiça até a promulgação da Constituição.

O movimento indígena acompanha o assunto com grande expectativa e, desde segunda-feira (5), mobilizou cerca de duas mil pessoas de várias regiões e etnias num acampamento montado ao lado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Manifestações contra a interpretação ruralista também foram realizadas ao longo da semana em outros locais no Brasil e exterior. 

Indígenas acompanham julgamento do lado de fora do STF, em Brasília | Nelson Jr. / SCO / STF
Indígenas acompanham julgamento do lado de fora do STF, em Brasília 📷 Nelson Jr. / SCO / STF
“Boa-fé”

Em seu voto, Moraes ponderou sobre a necessidade de se respeitar os direitos dos produtores rurais que adquiriram de “boa-fé” títulos de propriedade emitidos pelo Estado.  

“Da mesma forma que as comunidades indígenas têm o direito de se indignarem por não terem suas terras demarcadas, aqueles agricultores que estiverem na terra de boa-fé têm o direito de receberem uma indenização justa. O grande culpado é o poder público”, afirmou. “Me parece que não há necessidade nem do oito nem do 80, eu diria, nos reflexos da decisão do Supremo Tribunal Federal. Se continuarmos com isso, jamais conseguiremos garantir a paz no campo”, disse. 

Ele o lembrou os massacres sofridos pelo povo Xokleng até a década de 1950 pelos “bugreiros”, pessoas contratadas pelo governo de Santa Catarina para expulsar e assassinar os indígenas. Moraes citou o processo colonizatório e a submissão imposta aos povos indígenas: “Muito mais que um choque de culturas, houve sim um massacre cruel em relação aos povos originários e uma submissão imposta pelo Estado, desde o início”.

O caso específico analisado agora pela corte trata do recurso da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para impedir a reintegração de posse movida, em 2009, pelo governo de Santa Catarina sobre um trecho da TI Ibirama-La Klãnõ (SC), habitada pelos Xokleng, entre outras populações. A ação chegou ao tribunal, em 2016, e foi elevada à categoria de “repercussão geral” em 2019. Isso significa que a decisão sobre ela servirá de diretriz para a gestão federal e o Judiciário em relação a todas as demarcações do país.

Ministro do STF Luís Roberto Barroso | José Cruz / Agência Brasil
Ministro do STF Luís Roberto Barroso 📷 José Cruz / Agência Brasil
Barroso destaca concordâncias  

Mesmo após a interrupção do julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso destacou posições suas em comum com as de Fachin e Moraes. 

“Considero muito importante os aspectos de concordância manifestados pelo ministro Alexandre de Moraes em relação ao voto do ministro Edson Fachin, desmistificando, ao meu ver, com acerto, ambos, a ideia de que haveria um ‘marco temporal’ assinalado pela presença física em 5 de outubro de 1988 e reconhecendo que a tradicionalidade e a persistência da reivindicação em relação à área, mesmo que desapossadas, também constitui fundamento de direito para as comunidades indígenas”, salientou 

Barroso também defendeu a redefinição do conceito de “renitente esbulho”, exceção à regra do “marco temporal” defendida em um julgamento anterior da Segunda Turma do STF. 

“Evidentemente não se pode nem se deve exigir das comunidades tradicionais que atuem da mesma forma que a cultura dominante, ajuizando ações judiciais, fazendo notificações judiciais ou tomando providências que não são compatíveis com as culturas tradicionais”, argumentou. “Portanto, ainda que se queira preservar essa ideia de ‘esbulho renitente’, ela tem que ser reconceituada para uma permanente manifestação de inaceitação daquele desapossamento injusto”, concluiu.  

Avaliação indígena

Também estavam presentes no STF a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), o cacique Raoni Metuktire e a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana. 

Xakriabá considerou positivo o resultado da sessão e elogiou o voto de Moraes. “Também já prevíamos que ia entrar com o pedido de vistas, mas conseguimos agora dar um fôlego, porque saímos com voto favorável”, comentou.

A deputada avaliou que a manifestação do ministro pode influenciar positivamente a tramitação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, proposta ruralista que prevê a aplicação do “marco temporal”, foi aprovada recentemente pela Câmara e agora está no Senado. 

“Para nós, que enfrentamos o PL 490, que tenta acelerar e antecipar a tese do ‘marco temporal’, é uma vitória importante”, comemorou. “Então, neste momento, para enfrentar o [PL] 2903 [nova numeração do PL 490] no Senado, nós temos uma vantagem”, afirmou.

“Mas precisamos permanecer vigilantes, porque a ‘bancada do desmatamento’ ainda segue fortalecida. Certamente, o ministro Alexandre de Moraes, que tem votado muito coerentemente em favor da democracia, votar junto com os povos indígenas é uma sinalização importante para dizer que não vai existir democracia sem demarcação dos territórios indígenas”, enfatizou.  

Já o assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) Maurício Terena classificou o voto de Moraes como um “meio termo” entre os dois votos anteriores, de Fachin e Nunes Marques. 

“Essa tese ‘meio termo’ tem alguns problemas, justamente porque ela prevê, por exemplo, a instituição da indenização prévia, ou seja, isso pode causar problemas internos entre nós, isso pode causar o assédio de pessoas querendo comprar terras indígenas e ocupar os territórios. Para os direitos dos povos indígenas não existe negociação, não existe ‘meio termo’ ”, criticou. 

Tese proposta por Alexandre de Moraes

(Transcrito da transmissão da TV Câmara; sujeito a revisão após publicação oficial do voto)

1) A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário à posse das terras ocupadas tradicionalmente pelas comunidades indígenas. 

2) A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo os seus usos, costumes e tradições, nos termos o parágrafo 1º do artigo 231 do texto constitucional.  

3) A proteção constitucional aos direitos [dos povos] originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal, em 5 de outubro de 1988, ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.

4) Inexistindo a presença do marco temporal, em 5 de outubro de 1988, ou de renitente esbulho ou conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada, que tem a ver por objeto a posse ou o domínio; ou a ocupação de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena; ou a exploração do solo, rios e lagos nela existentes; assistindo ao particular direito à indenização prévia em face da União, em dinheiro ou títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, tanto em relação à terra nua quanto em relação às benfeitorias realizadas.

5) Na hipótese prevista do item anterior, sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada, e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja [sua] expressa concordância. 

6) O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto 1.775/1996 é elemento fundamental para demonstração da tradicionalidade da ocupação da comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições. 

7) O redimensionamento da terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório, nos termos das normas vigentes. 

8) As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios nela existentes.

9) As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.
 
10) Há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/moraes-vota-contra-marco-temporal-e-propoe-indenizacao-de-terra-mendonca

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