PL 2903 em votação no Senado Federal 📷 Pedro França/Agência Senado

Reportagem atualizada em 26/08/2023 às 12:45

Aprovado na Comissão de Agricultura, PL 2903 prevê não apenas ‘marco temporal’ das demarcações, mas inúmeros retrocessos que ameaçam territórios e populações vulneráveis

Com relativa facilidade, por 13 votos contra 3, ruralistas e bolsonaristas aprovaram na Comissão de Agricultura (CRA) do Senado, na tarde desta quarta-feira (23/08), o Projeto de Lei (PL) 2.903/2023 — a maior ameaça aos direitos indígenas em tramitação no Congresso desde a Redemocratização. A proposta segue para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, depois, para o plenário da Casa. Se for aprovada sem alterações, vai à sanção ou ao veto presidencial. Caso seja modificada, volta à Câmara.

A informação que circulou no Senado é que a bancada ruralista pretende votá-la na CCJ já na semana que vem e matar a fatura no plenário até a primeira semana de setembro. “Bastidores apontam para relatoria [na CCJ] do senador Márcio Bittar (UNIÃO-AC)”, informou a assessoria de imprensa da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Bittar é um dos ruralistas mais radicais da Casa.

Mas o caminho rumo à mesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode ser encurtado: a bancada segue pressionando o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a colocar em votação um requerimento de urgência que levaria a matéria direto ao plenário. 

Além do ‘marco temporal’

Na Câmara, o projeto tramitou com o número 490/2007 e ficou conhecido como “PL do marco temporal”, por pretender incluir na legislação a tese ruralista de que só poderiam ser demarcadas as terras que estivessem sob posse das comunidades indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A proposta desconsidera, assim, o histórico de expulsões e violências cometidas contra essas populações. Alternativamente, elas teriam de comprovar que estavam disputando a área judicialmente ou por meio de conflito em campo. O problema é que, até 1988, os indígenas sequer tinham o direito de entrar na Justiça e não havia a preocupação de registrar a presença na terra.

O PL 2.903 impõe, no entanto, uma série de outras propostas consideradas inconstitucionais por juristas, o movimento indígena e a sociedade civil, como a anulação de “Reservas Indígenas” e a possibilidade de contato forçado com indígenas isolados, ameaçando a vida de grupos inteiros (veja quadro ao final da reportagem).

“A possibilidade de retirar terras já completamente regularizadas dos indígenas por suposta ‘perda de traços culturais’, como prevê o PL, é completamente absurda”, critica a advogada do ISA Juliana de Paula Batista. “A Constituição reconheceu aos indígenas seus usos, costumes e tradições e rompeu com perspectivas de assimilação e integração à sociedade nacional. A proposta, nesse ponto, também fere o ato jurídico perfeito e o direito adquirido dos indígenas. Ou seja, é inconstitucional sobre qualquer prisma que se analise a matéria”, destaca.

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Audiência pública
Kleber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)
Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib 📷 Pedro França/Agência Senado

A votação na CRA estava marcada para a semana passada, mas parlamentares governistas conseguiram costurar um acordo para adiá-la, realizar uma audiência pública sobre o tema, antes da sessão de ontem, e votar o projeto em seguida.

Na audiência, representantes do movimento indígena, do Ministério da Justiça, a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, e senadores aliados insistiram que a longa lista de retrocessos aos direitos indígenas prevista no projeto e seus impactos precisariam ser melhor discutidos com os povos originários.

“Há a necessidade de ampliarmos esse debate para um formato mais adequado, principalmente na consulta aos povos indígenas do Brasil, que serão os mais impactados. Esse processo precisa ser ampliado e participativo, de acordo com o que prevê a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], sobre o direito de consulta prévia dos povos indígenas”, afirmou Kléber Karipuna, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

“Agora continuamos os debates, principalmente com o senador Rodrigo Pacheco, que assumiu um compromisso com o movimento indígena e continuamos cobrando esse compromisso de não tramitar açodadamente esse PL e garantir pelo menos que ele passe por outras comissões”, informou.

Na terça (22), 310 redes, movimentos e organizações da sociedade civil publicaram uma carta, pedindo a Pacheco que cumpra a promessa de garantir um debate aprofundado sobre o tema, encaminhando o PL às comissões de Direitos Humanos, Meio Ambiente e Assuntos Sociais. O ISA, o Observatório do Clima (OC) e a Apib assinam o documento.

Na sessão da CRA, no entanto, os ruralistas ignoraram os apelos. Para abreviar a discussão, justificaram que a proposta poderia ser debatida mais profundamente na CCJ e no plenário. A relatora, Soraya Thronicke (Podemos-MS), rejeitou as dez emendas apresentadas pelos senadores Eliziane Gama (PSD-MA) e Beto Faro (PT-PA) e propôs a aprovação do texto integral vindo da Câmara.

Além de Thronicke, votaram a favor os senadores Jaime Campos (União-MT), Izalci Lucas (PSDB-DF), Jorge Seif (PL-SC), Zequinha Marinho (Podemos-PA), Sergio Moro (União-PR), Ivete da Silveira (MDB-SC), Wilder Moraes (PL-GO), Sérgio Petecão (PSD-AC), Margareth Buzetti (PSD-MT), Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Vanderlan Cardoso (PSD-GO) e Tereza Cristina (PP-MS). Apenas Faro, Gama e Humberto Costa (PT-PE) votaram contra. Após o fim da votação, o senador Chico Rodrigues (PSB-RR) informou que não conseguiu chegar a tempo à sessão e pediu que seu voto favorável fosse registrado em ata.

Pouco depois, os senadores Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) e Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo, apresentaram requerimentos para que o PL 2.903 seja apreciado também pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH).

Radicalização

Membros do governo e de organizações da sociedade civil que conversaram com os ruralistas do Senado nas últimas semanas afirmam que, apesar da cordialidade de Thronicke, o clima entre eles é de radicalização.

Na sessão da CRA, os membros da bancada voltaram a defender que já haveria uma jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal (STF) a favor das propostas previstas no projeto, mas, ao mesmo tempo, que o Supremo estaria usurpando a prerrogativa do Congresso de legislar sobre o assunto. O objetivo do discurso é aprovar o projeto antes que o tribunal retome o julgamento da tese do “marco temporal”. No final de hoje, a corte divulgou que o caso entrou na pauta da sessão da próxima quarta (30), justamente no dia em que o PL pode ser votado na CCJ.  

O julgamento arrasta-se desde 2021. Ele foi reiniciado e suspenso, incluído e retirado da pauta da Corte várias vezes. Na última vez, em junho, foi paralisado por um pedido de vistas do ministro André Mendonça.

Thronicke reconheceu que os parlamentares estão preocupados com a decisão do STF, mas disse que os poderes da República vivem um momento mais tranquilo em sua relação e acredita que a Corte  “não fará uma guerra contra o Legislativo” nesse tema.

Esperança na CCJ

A facilidade com que o PL 2903 foi aprovado na CRA, o silêncio de Pacheco e dos governistas sobre o assunto sugerem dificuldades para que o projeto seja pautado em outras comissões. O próprio presidente do Senado, entretanto, emite sinais de que é melhor esperar a decisão do STF para buscar uma proposta de consenso.

A esperança imediata do movimento indígena e da sociedade civil, agora, é conseguir mais prazo para debates ou alterações no projeto na CCJ, onde a correlação de forças é menos desfavorável, mas ainda assim incerta, a depender do tema em votação. O colegiado é presidido por David Alcolumbre (União-AP), que tem boas relações com o governo.

Na sessão da CRA, os petistas condenaram o PL 2903. “Entendemos que esse projeto é, em todos os aspectos, nefasto para o país”, avaliou Humberto Costa. “[Votar o projeto hoje é] uma decisão de extrema gravidade. Esperamos que o Senado tenha a sensibilidade adequada para entender que esse projeto não é bom para o Brasil, para as comunidades indígenas. Ele vai contra o que está se debatendo no mundo inteiro”, completou.

“Boa vontade do governo”
Senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) em pronunciamento à bancada
Senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) em pronunciamento à bancada 📷 Marcos Oliveira/Agência Senado

Em entrevista ao final da sessão, Thronicke sugeriu que a articulação política do governo demonstrou pouca vontade de influenciar a tramitação do projeto. “O governo não interferiu exatamente”, avaliou. “Para mim não é necessário [passar por outras comissões]. Pela própria movimentação do governo, eu vi que ele não tem tanto interesse, não trouxe tantas objeções”, comentou.

Ela informou que tomou a iniciativa de procurar Jacques Wagner para falar do assunto e que a conversa foi excelente. Na sessão da CRA, o senador admitiu que “trouxe poucas ideias” para a relatora. Thronicke garantiu que ouviu todos os interessados que a procuraram.

“Eu confesso até que me surpreendi com a boa vontade do governo em discutir sobre as indenizações, até mesmo uma proposta de permuta, caso aceite, esse proprietário, que perdeu suas terras, proprietário com títulos de ‘boa-fé’”, disse. “Então, eu me surpreendi com essa boa vontade e até mesmo com uma certa, não foi falta de articulação, mas um ‘deixar ir’ ”, afirmou.

“Eu me surpreendi com apenas três votos contrários. Eu imaginava que seria mais difícil. Isso já demonstra, pelo fato do PT ter protocolado três emendas, apenas ontem, sendo que isso já estava em minhas mãos, e à disposição para discussão e para emendar, há três ou quatro meses mais ou menos”, concluiu.

Na CRA, Wagner defendeu a necessidade de se estabelecer algum tipo de marco de tempo para as demarcações. “É claro que um país de dimensões continentais como o Brasil não pode viver em insegurança jurídica territorial ad infinitum”, argumentou.

Ele ressaltou, no entanto, que é injusto pretender definir um marco de uma data específica, há mais 35 anos atrás, para a oficialização de Terras Indígenas, enquanto propostas para a regularização fundiária de terras ocupadas por não indígenas em tramitação no Congresso estabelecem um limite temporal de quatro, cinco anos atrás. “Não há equilíbrio nessa lógica”, finalizou.

Principais problemas do PL nº 2903

–  Aplica que o “marco temporal” é um critério a ser observado a todas as demarcações de TIs, inviabilizando um procedimento já demorado;

– Estabelece que a demarcação seja contestada em todas as fases do processo administrativo, o que poderá inviabilizar sua finalização e causar tumulto processual;

– Autoriza a plantação de transgênicos em TIs, o que hoje é proibido e poderá gerar a contaminação de sementes e espécies crioulas e nativas, comprometendo a biodiversidade, o patrimônio genético e a segurança alimentar dos povos indígenas;

– Permite a retomada de “Reservas Indígenas” pela União a partir de critérios subjetivos;

– Permite a implantação nas TIs de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação” independentemente de consulta aos povos indígenas afetados;

– Põe fim à política de “não contato” com indígenas isolados. De acordo com o PL, o contato poderia ser feito com a finalidade de “intermediar ação estatal de interesse público”, por empresas públicas ou privadas, inclusive associações de missionários;

– Nas sobreposições entre territórios indígenas e Unidades de Conservação, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área.

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/ruralistas-estao-mais-perto-de-aprovar-no-senado-o-maior-ataque-aos

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