Disponível em Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) divulgou uma manifestação de repúdio e todo apoio ao povo Ki’inya (Waimiri-Atroari) contra a medida publicada no Diário Oficial da União de 28/02/2019, do governo Jair Bolsonaro, que classifica como “de interesse da Política de Defesa Nacional” a construção da linha de transmissão Manaus (AM) – Boa Vista (RR) dentro da Terra Indígena (TI) Waimiri-Atroari, visando acelerar as obras e desrespeitando os direitos dos povos indígenas. Aproveitando da situação política instável da Venezuela e o fato que a cidade de Boa Vista depende de eletricidade da hidrelétrica do Guri na Venezuela, através do Conselho de Defesa Nacional (CDN), dirigido pelo Ministro de Segurança Institucional, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira e formado pela cúpula do governo federal e do poder legislativo, busca-se reeditar as práticas criminosas e genocidas cometidas contra os Waimiri-Atroari durante o regime militar em nome do “desenvolvimento” e da “defesa nacional”, desobedecendo a uma decisão da Justiça Federal, que exige a consulta prévia aos Waimiri-Atroari, segundo prevê a Constituição de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. O portavoz do presidente, general Otávio Rêgo de Barros, usando o argumento de segurança nacional, anunciou que a linha de transmissão de energia entre Manaus e Boa Vista será construída, atravessando a Terra Indígena Waimiri-Atroari, independente do resultado de uma consulta com este povo indígena.

A medida lembra as práticas de o governo militar no final de 1981, quando a empresa Mineração Taboca S. A. que havia ocupada o leste do território Waimiri-Atroari, solicitou ao Presidente da FUNAI, “permissão especial para construção e utilização, em caráter privado e exclusivo de uma estrada” para escoamento de minérios, da qual um trecho de 38 km estaria dentro do território indígena. Apesar de pareceres desfavoráveis à concessão de autorização apresentados por diversos funcionários da FUNAI em Brasília, o presidente da FUNAI, coronel-aviador reformado Paulo Moreira Leal, em Ofício de 18-06-1982, concedeu autorização à empresa mineradora para construir uma estrada de ligação com a BR-174, na justificativa de que o empreendimento “consulta os altos interesses nacionais”, após esta estrada da mineradora já ter sido construída clandestinamente entre a chamada Mina de Pitinga e a BR-174. E isso, após o desmembramento de cerca de 40% da área identificada pelo sertanista Gilberto Figueiredo Costa em 1971 como território tradicional WaimiriAtroari, para atender os interesses da Mineração Taboca S. A. que já estava instalando a Mina de Pitinga, e a Eletronorte que inundará uma vasta extensão da área desmembrada com o fechamento das comportas da Usina Hidrelétrica Balbina em 1987. O Decreto Presidencial no. 92.426, de 25-02-1986, outorgou à mesma empresa mineradora concessão para construir uma hidrelétrica no rio Pitinga, quando as obras já estavam adiantadas. Em 05-07-1984, o Ministro Chefe do Gabinete Civil encaminhou ao Ministro do Interior um projeto de decreto neste sentido, acompanhado da Exposição de Motivos do Ministro das Minas e Energia.

A ditadura militar (1964-1985) foi notória por suas políticas para abrir a região amazônica para o desenvolvimento por grandes empresas, com instalação de uma rede viária, a construção de grandes UHEs, projetos de mineração de grande escala, e incentivos para a expansão da pecuária. A construção da rodovia BR-174, que atravessou o território WaimiriAtroari entre 1970-1977 resultou em uma depopulação trágica do povo Waimiri-Atroari, estimada em cerca de 2000 na década de 1960 a 332 indivíduos em 1983, dizimação decorrente de epidemias de doenças introduzidas que assolaram as aldeias e violências praticadas pelo Exército.

Ao longo dos anos 1980 houve uma estreita articulação entre o Exército, a Mineração Taboca S.A. e a Eletronorte, para facilitar a implantação de grandes projetos desenvolvimentistas em TIs. A TI Waimiri-Atroari, delimitada pelo sertanista da FUNAI, Gilberto Pinto Figueiredo Costa no início dos anos 1970, foi transformada em “área temporariamente interditada para fins de atração e pacificação” do povo Waimiri-Atroari, com desmembramento da parte ocidental da TI por decreto presidencial Decreto no. 86.630, de 23-11-1981. A área desmembrada estava sendo previamente ocupada pela Mineração Taboca e o desmembramento favoreceu os interesses tanto da Eletronorte quanto da Mineração Taboca, com a inundação de vasta área pela UHE Balbina e a instalação de uma das maiores minas de estanho do mundo já que se encontrava dentro desta TI. Por manipulações cartográficas, o curso superior do rio Uatumã foi deslocado para um igarapé sem nome, e as cabeceiras deste rio foram renomeadas o rio Pitinga, registrado no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), assim liberando uma vasta extensão a ser inundada pela UHE de Balbina e ocupada pela Mineração Taboca.

O Programa Waimiri-Atroari (PWA), resultado de um acordo entre a Eletronorte e a FUNAI, instalado a partir de abril de 1987, é programa assistencialista que efetivamente privatizou o indigenismo do Estado e o transferiu para a mesma empresa que implantou a UHE Balbina que inundou uma vasta extensão do território tradicional do povo indígena Waimiri-Atroari. O PWA serve como modelo para o indigenismo empresarial, com amplos recursos do Banco Mundial e da Mineração Taboca na forma de royalties para a construção da estrada dentro do que sobrou da TI após seu desmembramento e redefinição, instituiu um indigenismo empresarial que sob, a fachada de ser um modelo de indigenismo, perpetua um indigenismo autoritário e tutelar que prepara lideranças indígenas subordinadas aos interesses da sua administração. O modelo do PWA, planejado já no início dos anos 1980 com participação do Exército, a Mineração Taboca e a FUNAI, para politicamente desmobilizar os WaimiriAtroari e transformá-los em indígenas que não apenas aceitam grandes projetos desenvolvimentistas, mas participam nas campanhas publicitárias da empresa como seus porta-vozes. A TI Waimiri-Atroari, atualmente de 2.586.000 hectares, foi declarada de ocupação indígena pelo Decreto no. 94 606 de 14.07.1987 e, posteriormente homologada através do Decreto n? 97.837 de 16.06.1989, entretanto excluindo a área desmembrada em novembro de 1981 de aproximadamente 526.800 hectares.

De esta maneira, se criou caminhos para a exploração de recursos minerais e hídricos em TIs “dentro da Lei”, respaldada numa retórica de autodeterminação indígena que concilia também exigências ambientalistas para um desenvolvimento “sustentável”. A estratégia das lideranças Waimiri-Atroari que foram incorporadas a um programa indigenista autoritário que perpetua o modelo tutelar de indigenismo atrelado a interesses empresariais, característico da política indigenista governamental durante o período da ditadura militar, tem sido a de aprender as regras do jogo do indigenismo empresarial, assumindo simulacros de autonomia, ao apresentar uma retórica de autonomia e revitalização cultural, encenada em vídeos propagandísticos ao lado do supervisor indigenista do Programa, conforme exigidos delas pela administração, na qual estão incorporadas em cargos subalternos. Em situações de extrema assimetria de poder entre grandes empresas e povos indígenas, como o caso do povo Waimiri-Atroari e o PWA, as empresas chegam a assumir a política indigenista, dever constitucional do Estado.

Desde 2008, com o planejamento da linha de transmissão que liga Manaus a Boa Vista. o povo Waimiri-Atroari vem experimentando uma nova ofensiva da Eletronorte e do governo em tentar impor seu poder e atropelar os direitos indígenas, na construção da linha de transmissão que pretende ligar Boa Vista a Manaus e à rede nacional de eletricidade, atravessando 125 km da TI Waimiri-Atroari, paralela à rodovia BR-174, sem nenhuma consulta aos Waimiri-Atroari. 

Em 2018, a Eletronorte enviou uma carta aos Waimiri-Atroari ameaçando suspender os repasses de verba indenizatória ao PWA. Desde 2013, a Eletronorte reduziu o valor dos repasses para o PWA em 30% e ofereceu restituir o valor do pagamento se o povo indígena aceitasse a construção de mais uma ocupação de parte do seu território – a construção da linha de transmissão em suas terras. Em 20/08/2019, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) tentou fracionar o licenciamento do empreendimento em três e construir a linha de transmissão fora da TI para criar um fato consumado e justificar posteriormente a ligação dentro da TI. O Ministério Público Federal (MPF) recomendou o não fracionamento do licenciamento e sua emissão apenas após o consentimento dos Waimiri-Atroari, condicionando o licenciamento da linha de transmissão ao direito de consulta e o consentimento dos Waimiri-Atroari, enfatizando o massacre sofrido por este povo indígena durante a construção da rodovia BR – 174 entre 1970 e 1977, e respeitando a Constituição federal de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os Waimiri-Atroari responderam ao presidente da FUNAI, repudiando a imposição da Eletronorte e exigindo seu direito de consulta livre, prévia e informada. Em maio de 2018, o Ministério de Minas e Energia (MME) tentou impor uma interpretação jurídica para driblar o processo de oitiva dos índios e pediu ao Ministério da Defesa um parecer que definisse a linha de transmissão como obra de “interesse da política de defesa nacional”. Outra tentativa de negar os direitos indígenas era de alterar a legislação de licenciamento ambiental por meio do contrabando legislativo chamado de Jabuti. Dentro de uma Medida Provisória que tratava do tema dos refugiados na Venezuela, o deputado Jhonatan de Jesus (PRB-RR) tentou flexibilizar o processo de autorização de obras. Somente após pressão dos Waimiri-Atroari e da sociedade civil, o Jabuti foi derrubado. Em 2013 e 2015, decisões da Justiça, pronunciadas a partir de ações civis públicas ajuizadas pelo MPF, impediram a continuidade de etapas do projeto da linha de transmissão pela falta de consulta prévia ao povo Waimiri-Atroari. O MPF considera a decisão da Eletronorte de suspender os repasses de convênio firmado com a Associação Comunidade Indígena Waimiri-Atroari (ACWA), para compensar a construção da UHE de Balbina “prática abusiva e de coação, em flagrante desrespeito à autonomia do povo Waimiri-Atroari, o que torna viciada e, portanto, nula, qualquer manifestação de consentimento eventualmente apresentada pelos indígenas”1 . Mais uma vez, o autoritarismo da Eletronorte se manifesta em relação a este povo indígena. 

Com a medida publicada no DOU de 28/02/2019, que classifica como “de interesse da Política de Defesa Nacional” a linha de transmissão Manaus (AM) – Boa Vista (RR), ameaçando construí-la sem consulta aos Waimiri-Atroari, ressuscitam-se as políticas da ditadura militar, em tentativa de burlar a legislação indigenista nacional e internacional, como a Constitucional Federal de 1988, a Convenção 169 da OIT e a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU.

Stephen G. Baines, DAN/UnB

1 Ministério Público Federal – Amazonas. Disponível em < http://www.mpf.mp.br/am/sala-deimprensa/noticias-am/licenciamento-ambiental-da-linha-de-transmissao-rr-am-nao-deve-ser-fracionadorecomenda-mpf> Acesso em 15/10/2018.

Fonte: http://ela.unb.br/pt-br/laboratorios/laepi/textos-livres

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