Levantamento exclusivo mostra que na última década empresas e grupos econômicos investigados ou citados na Lava Jato cometeram infrações ambientais que somam mais de R$ 600 milhões

 

Texto: Aldem Bourscheit | Infográficos: Juliana Mori, Bruno Fonseca

 

Levantamento da Agência Pública mostra que de 2008 a setembro de 2019 grandes empresas e grupos econômicos investigados ou citados na Operação Lava Jato cometeram infrações ambientais que somam R$ 606 milhões na Amazônia Legal, região que engloba nove estados do país. A operação começou em março de 2014.

O montante representa 1,5% dos R$ 39,5 bilhões em ilícitos anotados pelo Ibama na região durante o período analisado. Consórcio Santo Antônio Energia – com presença da Odebrecht –, Eletrobrás, JBS, Vale e banco Santander e consórcio Norte Energia respondem por cerca de 90% dos valores das multas listadas pela reportagem. A grande maioria das infrações ocorreu nos estados do Pará, Maranhão, Mato Grosso e Rondônia.

Bruno Fonseca e Juliana Mori/Agência Pública
As multas incluem desmatamento ilegal, dentro e fora de áreas protegidas, e de cortes de árvores ameaçadas de extinção, descumprimento e fraude de licenças, matança de peixes, aves e outros animais, guarda e transporte de madeira sem autorização, além de compra de gado e de grãos de áreas embargadas por delitos contra a natureza.

As mesmas companhias e grupos receberam ainda 687 licenças do Ibama e R$ 87 bilhões em financiamentos públicos para obras de infraestrutura no período. Valores de multas e de financiamentos estão corrigidos até outubro do ano passado pelo IPCA, o principal indicador oficial da inflação.

Do Brasil ao exterior
Desde 2017, a Lava Jato investiga o suposto pagamento de R$ 3 milhões em propinas a políticos e outros agentes públicos para “destravar burocracias” ligadas à obra da hidrelétrica de Santo Antônio. As investigações apontam que os pagamentos teriam ocorrido com apoio da Odebrecht, que é uma das acionistas da usina e acumula mais de 80 pedidos do Ministério Público Federal (MPF) para abertura de inquéritos na Lava Jato, em que centenas de políticos e empresários são citados em delações e investigações. O caso foi repassado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à Justiça Federal em Rondônia, onde tramita desde junho de 2018.

O consórcio Santo Antônio Energia soma, na última década, R$ 16,6 milhões em multas ligadas à construção da hidrelétrica de Santo Antônio, em Rondônia. As multas se devem à derrubada ilegal de florestas, falhas no cumprimento de licenças ambientais e matança de peixes. Das sanções, R$ 12,2 milhões (73%) foram registrados após o início da Lava Jato.

Outro caso de infrações ambientais na Amazônia é do grupo JBS, frigorífico ligado ao conglomerado transnacional de investimentos J&F. Suas infrações somam R$ 53 milhões por comprar gado de áreas ilegalmente desmatadas, poluir solo, ar e águas, guardar e receber madeiras sem licença, matar animais silvestres e fraudar licenciamentos. Os fatos ocorreram no Mato Grosso, Pará, Rondônia e Tocantins. Desde quando a Lava Jato iniciou suas investigações, o grupo acumula R$ 42 milhões em multas (79%).

Delação de executivos da JBS à operação em 2017 apontou repasses ilegais de R$ 500 milhões a mais de 1.800 políticos e partidos, sempre em busca de vantagens políticas e econômicas para os negócios da empresa. Essas investigações estão em curso. Desde 2016, a empresa foi alvo de pelo menos cinco ações da Polícia Federal (PF) por supostos crimes de fraude e de pagamento de propinas associados à liberação de recursos públicos e comércio de carnes.

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Já o espanhol Santander foi multado em R$ 52,4 milhões em 2016 por financiar o plantio de milho e soja em 572 hectares que haviam sido embargados por crimes ambientais no Mato Grosso. O maior banco dos 19 países que usam o euro opera no Brasil desde 1982.

Segundo a Lava Jato, o Santander é um dos cinco maiores bancos do país que teriam sido usados para lavagem de dinheiro desviado da Petrobras. O esquema funcionaria com contas abertas em nome de empresas de fachada e comandadas por doleiros envolvidos na operação. Investigações apuram qual foi o envolvimento dos bancos nesses casos.

Descaminhos energéticos
O grupo Eletrobrás domina o setor energético nacional desde a década de 1960 e está ligado à construção de hidrelétricas de todos os tamanhos na Amazônia. Na região, existem 221 usinas operando e outras 35 estão em construção ou com obras prestes a iniciar.

A estatal é citada na Lava Jato desde 2015 e é a maior acionista da Norte Energia, consórcio responsável pela usina de Belo Monte, no rio Xingu (PA). Quando a hidrelétrica foi inaugurada, um ano depois, sob pesados protestos indígenas, o ex-senador Delcídio Amaral, ex-líder do governo Dilma Rousseff no Senado, delatou à Lava Jato irregularidades no leilão público de Belo Monte e manobras políticas para beneficiar empresas nacionais no fornecimento de equipamentos. Daí teriam vindo propinas para políticos e campanhas do PT e do PMDB, afirmou o político.

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No fim do ano passado, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região remeteu da Justiça Federal em Curitiba (PR) para Brasília (DF) – onde estão as sedes da Eletrobrás e Norte Energia – uma investigação que apura se o ex-presidente Lula e outros réus participaram dos esquemas ligados a pagamento de propinas, lavagem de dinheiro e formação de cartel durante a construção da usina. A apuração da Polícia Federal (PF) corre em sigilo. A Pública entrou em contato com a defesa do ex-presidente Lula, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.

A Lava Jato investiga também os grupos Odebrecht e Estre pelo suposto pagamento de R$ 50 milhões em propinas, de 2008 a 2019, para que políticos os beneficiassem em contratações para a obra de Belo Monte.

Outros inquéritos apuram se a Norte Energia foi favorecida por então membros do governo federal para vencer o leilão que levou à construção da hidrelétrica, em 2010. As investigações da Lava Jato foram disparadas a partir de acordos de leniência entre o MPF e executivos da Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa – empresas participantes do consórcio construtor de Belo Monte.

Conforme o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Norte Energia teria formado um cartel com outras empresas interessadas na obra e dispostas a pagar propinas a partidos e políticos. Em dezembro, foi instaurado um processo administrativo contra pessoas físicas e jurídicas apontadas nas investigações. Ainda não há prazo definido para o julgamento do caso pelo tribunal do Cade. Empresas condenadas poderão pagar multas de até 20% sobre seu faturamento. Para pessoas físicas, as sanções podem chegar a R$ 2 bilhões.

Em relação às infrações ambientais, dados do Ibama mostram que a Eletrobrás e a Norte Energia receberam R$ 197,5 milhões em multas desde 2008. Poluíram terras e águas, transportaram ilegalmente toras de madeira, mataram mais de 60 mil peixes durante a construção de hidrelétricas na Amazônia e descumpriram licenciamentos. Desse montante, quase R$ 74 milhões (37,5%) foram registrados durante a Lava Jato.

“O Ibama não recomendava a construção de Belo Monte, mas foi atropelado. Trocaram o chefe de licenciamento do órgão, não atenderam a recomendações do Ministério Público Federal para correções no projeto e usaram até a ‘suspensão de segurança’ para que a obra continuasse, mesmo sem atender às condicionantes sociais e ambientais”, ressaltou Sérgio Guimarães, secretário-executivo do GT Infraestrutura. O grupo reúne três dezenas de entidades sociais, ambientalistas e indígenas que analisam e propõem alternativas ao modelo de implantação de infraestrutura nos países amazônicos.

A “suspensão de segurança” é usada desde a ditadura militar para a cassação judicial de decisões indigestas a governos e setor privado quando obras e projetos são considerados de relevante interesse público. Conforme o MPF, o instrumento foi usado sete vezes na construção de Belo Monte, que teve sua última turbina inaugurada em dezembro.

O teto para uma multa ambiental no Brasil é hoje de R$ 50 milhões. Após os desastres com as barragens de poluentes minerários de Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, o Congresso Nacional analisa projeto que pode aumentar em cem vezes esse valor, para até R$ 5 bilhões.

Apenas 3% das multas federais aplicadas desde 1980 foram realmente pagas por infratores ambientais, mostram dados públicos do Ibama. A taxa é metade da média de arrecadação com infrações de 14 órgãos federais, de 6%, revela um balanço do Tribunal de Contas da União publicado em 2017.

A mais multada
O nome da Vale surge em 2014 numa planilha do doleiro Alberto Youssef. O documento lista empreiteiras, obras e valores que, segundo o MPF, podem se tratar de propinas para a viabilização de contratos. A força-tarefa da Lava Jato em Curitiba (PR) informou que nem todas as empresas listadas são investigadas, “pois a simples menção da planilha não quer dizer que cometeram algum tipo de crime”. A Vale não é citada na base pública de informações da operação.

A Vale aparece também em delações de Antônio Palocci à PF sobre supostos ilícitos que somam pelo menos R$ 334 milhões e teriam sido repassados por empresas e bancos a políticos e partidos nos governos de Lula e Dilma Rousseff. As investigações avançam com operações da PF baseadas nas denúncias do político.

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Em relação às multas, a Vale foi a mais penalizada pelo Ibama na última década na Amazônia. São R$ 213,5 milhões em infrações por desmatamento ilegal em Unidades de Conservação e Terras Indígenas, derrubada de castanheiras – árvore ameaçada de extinção –, poluição de águas e terras, além do não cumprimento de licenças ambientais. Desse total, quase R$ 146,5 milhões (68%) em multas foram aplicadas a partir de março de 2014.

“A atuação da Vale no Brasil e no mundo está ligada à violação de direitos sociais e a danos ambientais. E a realidade é muito mais grave, pois nem todas as infrações são registradas”, ressalta Danilo Chammas, advogado da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, movimento que reúne ONGs, sindicatos de trabalhadores, pesquisadores e atingidos pela mineração nos mais de 30 países onde a empresa atua. Procurada, a Vale não comentou.

História repetida
Dados públicos mostram também que o Ibama concedeu 687 licenças entre 2008 a setembro de 2019 às empresas citadas pela Lava Jato, especialmente para obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Desde o início da operação, as companhias receberam 346 licenças – 171 (quase 50%) para negócios da Vale. O PAC é uma marca dos governos federais petistas para impulsionar obras de infraestrutura no país.

“A maneira de tomar decisões não mudou desde a ditadura militar. O modelo atual carimba obras como viáveis e de interesse público não importando quantos impactos socioambientais provoquem. É preciso liderança governamental para que critérios socioambientais sejam cumpridos, porque empresas não farão por vontade própria e o mercado brasileiro aceita esse comportamento”, diz Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e doutor em biologia pela Universidade de Michigan (Estados Unidos).

Bruno Fonseca e Juliana Mori/Agência Pública
Já Daniela Gomes, coordenadora do Programa de Desenvolvimento Local do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo (SP), lembra que infrações e multas não corrigem a atuação empresarial porque megaprojetos de infraestrutura e mineração são planejados e implantados por governos conforme demandas e orientação de setores econômicos de alcance nacional e internacional.

“Quase não há conexão [dos projetos] com as populações, meio ambiente e outras questões locais e regionais. Precisamos de instituições, mecanismos e debates políticos que olhem de forma mais ampla para os empreendimentos e territórios onde serão implantados. Hoje, quando chega uma grande obra na Amazônia, é uma catástrofe. Historicamente essas obras não levaram o prometido desenvolvimento à região”, ressalta.

Outro lado
Nenhuma das empresas investigadas ou citadas na Operação Lava Jato que acumulam mais multas na Amazônia no período analisado concedeu entrevista à reportagem. A Santo Antônio Energia informou por email que “não vai se manifestar a respeito”. Odebrecht, Vale e Eletrobras não se pronunciaram até o fechamento da reportagem.

Santander, JBS e Norte Energia enviaram posicionamentos por email. Todos recorreram das autuações citadas na reportagem. O Santander disse que “atuou e continua a atuar em conformidade com a regulamentação aplicável e adota as melhores práticas socioambientais”.

A JBS afirmou ter compromisso para “combater, desencorajar e eliminar o desmatamento na Amazônia”. Conforme a Norte Energia, Belo Monte “respeitou o importante equilíbrio entre o potencial de geração de energia do rio Xingu e a conservação socioambiental da região”.

Abençoados pelo BNDES

Bruno Fonseca e Juliana Mori/Agência Pública
A análise realizada pela Pública revela, ainda, vultosos financiamentos concedidos às empresas e grupos econômicos envolvidos em centenas de ilícitos ambientais na Amazônia na última década. Obras dessas companhias na região receberam R$ 87 bilhões Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Desse montante, R$ 8,4 bilhões (9,6%) foram emprestados durante a Lava Jato.

Desde 2008, a Norte Energia recebeu quase R$ 38 bilhões para a mega-hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). Outros grandes beneficiados pelo banco foram a Vale (R$ 16,7 bilhões), os consórcios Energia Sustentável do Brasil (R$ 16 bilhões) e Santo Antônio Energia (R$ 13,8 bilhões), além da Vale (R$ 14,8 bilhões). Os recursos serviram para a construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira (RO), e aumentaram a produção e o transporte de minérios.

Investigação anterior da Pública em parceria com O Eco revelou que obras financiadas pelo banco são acusadas de mascarar impactos sobre os ambientes naturais, populações indígenas e trabalhadores.

“O BNDES historicamente banca de 70% a 80% do orçamento de grandes obras de infraestrutura na Amazônia. Também há investimentos diretos, créditos subsidiados e incentivos fiscais concedidos pelos governos. Isso tudo ajudou a engrossar a dívida pública brasileira [de R$ 4,2 trilhões no fim de 2019]”, destaca Alessandra Cardoso, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em Brasília (DF).

Essa reportagem é resultado das Microbolsas Lava Jato, realizada pela Agência Pública. Em sua 10ª edição, o projeto investigou a Operação Lava Jato.

 

Fonte: https://apublica.org/2020/02/os-rastros-da-lava-jato-na-amazonia/

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