Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Cobrança de John Kerry por um engajamento com as populações indígenas merece destaque no Dia do Índio

 

Essa semana vai se realizar a Cúpula do Clima, convocada pelo presidente americano Joe Biden. O Brasil estará no foco das atenções e, entre outros aspectos, a questão dos ataques aos povos indígenas estará em pauta.

Após o governo brasileiro, capitaneado pelo ministro das “boiadas devastadoras”, Ricardo Sales, ter estimulado queimadas e o desmatamento na Amazônia e Pantanal, facilitado mineração ilegal em terras indígenas, apoiado a grilagem de terras, defendido a extração ilegal de madeira e obstruído investigações da PF contra crimes ambientais, o presidente Bolsonaro se comprometeu, em carta ao governo americano, a “eliminar o desmatamento ilegal até 2030”

Com esse histórico, a carta “cara de pau” de Bolsonaro não vale uma nota de três reais. É “para inglês ver”. Como o secretário John Kerry, responsável pela política de clima dos EUA, não tem nada de ingênuo, ele cobrou do Brasil “ações imediatas e engajamento com as populações indígenas e a sociedade civil para que este anuncio possa produzir resultados tangíveis ainda em 2021”.

O presidente americano Joe Biden – (foto retirada a pedido do detentor de direito autoral)

A exigência é essencial pois, como se viu no episódio em que o ministro Sales se transfigurou em advogado de defesa de madeireiros ilegais, seguido da exoneração do chefe da PF do Amazonas que investigava o caso, nada indica que algo vai mudar na política de destruição ambiental patrocinada pelo governo. Bolsonaro remete para 2030 um compromisso que deveria estar cumprindo desde 2019, que integra o Acordo de Paris, firmado pelo Brasil em 2015.

A cobrança de Kerry por um “engajamento com as populações indígenas” merece destaque nesse 19 de abril, o chamado “Dia do Índio”, que, aliás, deveria ser alterado para o “Dia dos Povos Indígenas”.

Atendendo pedido de Biden, o embaixador americano se reuniu semana passada com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A entidade denunciou as ameaças do governo contra os indígenas, como a promoção do desmatamento e a liberação da mineração em terras indígenas, e ressaltou a necessidade de serem retomadas a demarcação das terras indígenas e medidas para impedir a aquisição de produtos oriundos de atividades ilegais em terras indígenas e áreas desmatadas.

Quando se fala de terras indígenas e do seu papel na proteção do meio ambiente, imediatamente nossos olhos se voltam para a Amazônia. Mas, logo aqui ao lado, em São Paulo, os Guarani, que ocupam as Terras Indígenas (TI) Jaraguá e Tenondé Porã, com 19 aldeias, lutam para proteger o meio ambiente, fortalecer sua cultura e desenvolver atividades econômicas sustentáveis.

Essas terras indígenas tem um papel estratégico para manter o cada vez mais difícil equilíbrio ecológico do aglomerado urbano paulistano, contribuindo para conter a expansão urbana, preservar o cinturão verde da Região Metropolitana e os remanescentes da mata atlântica, um dos biomas mais devastados do país. Embora não tenham a dimensão da Amazônia, também cumprem papel relevante no enfrentamento da emergência climática.

Foi nessa perspectiva que, em parceria e diálogo com lideranças guaranis, propus em 2016 o Projeto de Lei 181/2016, que cria a “Política Municipal de Fortalecimento Ambiental e Cultural de Terras Indígenas de São Paulo”. Por propor uma política para terras indígenas que estão nas bordas da área urbanizada e que devem ser integramente protegidas, o projeto foi apelidado como “Cinturão Verde Guarani na cidade de São Paulo”.

Ele foi proposto em continuidade a várias iniciativas realizadas pela prefeitura a partir de 2014, quando o Plano Diretor de São Paulo reconheceu as terras guaranis de acordo com a proposta da Funai e as incluiu como áreas protegidas, antes do governo federal ter assinado a Portaria Declaratória que consolidou seus limites, o que só ocorreu em 2016.

O projeto também foi inspirado no Programa Aldeia, criado pelo Secretaria Municipal da Cultura, que propõe fortalecer e valorizar os Guarani e suas terras como parte da diversidade cultural paulistana. O programa foi formulado em parceria com os próprios indígenas e é por eles conduzidos, aspectos que foram mantidos na proposta de lei.

O PL 181/2016 não apenas garante a continuidade dessas ações consolidadas em lei, como as expandem e as incorporam em uma ação mais ampla e articulada, como uma política pública de fortalecimento das terras indígenas, integrando programas e ações isoladas, criando uma instância de governança onde os Guarani passam a ter grande protagonismo.

O Cinturão Verde Guarani objetiva “promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das Terras Indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e fortalecimento cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural”.

São inúmeras as iniciativas que foram propiciadas pelo reflorescimento Guarani, gerada pelo Programa Aldeias e que seriam impulsionadas pela política integrada proposta.

O relatório “Como os Guarani estão usando seu território para viver melhor e preservar a riqueza ambiental de São Paulo”, produzido pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), parceiro do Programa Aldeias, apresenta inúmeras iniciativas de desenvolvimento sustentável, como o sistema ecológico de captação, aquecimento e filtragem de água, o processo de recuperação de solos degradados e a trocas de sementes com outras comunidades indígenas, que gerou a obtenção de 50 espécie de jety, o termo guarani para batata doce.

Injustificadamente, passados exatos cinco anos da sua apresentação (foi lançado no Dia do Índio de 2016), o PL não foi aprovado pela Câmara Municipal, por não ter recebido o aval da gestão Covas. O que impede a prefeitura de aprovar esse projeto, que representa concreta e simbolicamente um engajamento com os indígenas e com a pauta da emergência climática?

Uma das hipóteses é a existência de interesses imobiliários no entorno das terras indígenas, que ficariam prejudicado com o fortalecimento dos Guarani.

Na Zona Sul, onde fica a TI Tenondé Porã, com 16 mil hectares, a área de proteção dos mananciais tem sido alvo de ocupações por empreendimentos ilegais e criminosos que não tem sido combatidos com rigor pelos governos municipal e estadual.

Já no entorno da TI Jaraguá, na Zona Noroeste, a prefeitura aprovou um empreendimento habitacional, que iniciou o desmatamento da área, sem submeter o projeto a um Estudo de Impacto Ambiental de componente indígena, o que seria necessário.

Por outro lado, o governo Bolsonaro congelou todos os estudos e ações para dar continuidade a demarcação física dessas terras indígenas e sua desentrução, ou seja, a retirada e indenização dos ocupantes não indígenas que usam a terra de boa fé.

Nessa semana, em que se realiza a Cúpula do Clima, em que se comemora o Dia do Índio e em que a comunidade internacional cobra iniciativas do Brasil para se engajar com os povos indígenas, seria muito oportuno o município de São Paulo dar um exemplo para o governo federal aprovando a Política Municipal de Fortalecimento das Terras Indígenas, o Cinturão Verde Guarani.

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