PL 2.903/2023 tem inúmeros retrocessos; análise do ISA aponta para inconstitucionalidade da proposta que ameaça povos indígenas e seus territórios
Carolina Fasolo – Jornalista do ISA
* reportagem atualizada 17/08/2023 às 11h50
A votação pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado do Projeto de Lei do Marco Temporal (PL nº 2903/2023); numerado na Câmara como 490/2007, prevista para quarta-feira (16/08), foi adiada para a próxima semana. Se aprovado, o texto segue para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Aprovado pela Câmara dos Deputados no fim de maio, a proposta impõe uma série de retrocessos aos direitos indígenas. Além de estabelecer a tese do marco temporal, inviabilizando novas demarcações, o projeto viabiliza a exploração predatória dos recursos naturais nas Terras Indígenas (TIs); permite a instalação de empreendimentos com grandes impactos socioambientais nessas áreas; viola o direito à consulta prévia; e prevê a possibilidade de promover contatos forçados com indígenas isolados.
Em nota técnica divulgada hoje, o ISA aponta para a inconstitucionalidade da proposta e sugere sua rejeição pela comissão.
“A alteração promovida pelo PL é inconstitucional porque altera, por intermédio de Lei ordinária federal, texto expresso da Constituição”, afirma a nota. De acordo com o documento, enviado à relatora na CRA, Soraya Thronicke (Podemos-MT), além de inviabilizar acordos internacionais e investimentos para o país, o PL pode “aumentar o desmatamento, as invasões de terras e a violência contra os indígenas, ante a expectativa de anulação dos processos de demarcação”.
Além disso, destaca o documento, o Congresso Nacional não promoveu consulta livre, prévia e informada sobre a medida legislativa, contrariando tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Trata-se do direito fundamental dos povos indígenas de serem consultados pelo Estado todas as vezes que medidas administrativas ou legislativas possam afetá-los diretamente”, pontua a nota.
Marco temporal
A tese do marco temporal determina que só teriam direito à terra os povos indígenas que estivessem em sua posse na data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), desconsiderando o histórico de expulsões, remoções forçadas e violências cometidas contra essas populações, principalmente durante a Ditadura Militar.
O PL permite ainda que os interessados contestem as demarcações em todas as fases do procedimento. De acordo com a nota do ISA, “a possibilidade é inédita, visto que em todo e qualquer processo administrativo há regras, momentos e prazos para a contestação dos interessados”. “Permitir que o processo não tenha limite no prazo para a contestação tem como finalidade tumultuar e inviabilizar o término das demarcações”, destaca Juliana de Paula Batista, advogada do ISA.
Hoje, a contestação pode ser feita por qualquer pessoa, desde a abertura do processo até 90 dias após a publicação do relatório de identificação elaborado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Depois, o processo segue para a declaração de limites do território pelo Ministério da Justiça. Há demarcações que arrastam-se por 20 ou 30 anos.
Indígenas isolados
O PL 2903 ameaça os povos indígenas que vivem em isolamento ao inaugurar uma política de contato forçado na hipótese de “ação estatal de utilidade pública”. Segundo a proposta, a competência para os contatos forçados seria de “agentes estatais”, intermediados por “empresas públicas ou privadas”, o que poderia incluir, inclusive, missões religiosas.
Desde o final dos anos 1980, a Funai estabeleceu que os grupos sem contato oficial com o Estado devem ter a opção de fazê-lo, no momento e na forma que acharem conveniente. Em contrapartida, o governo deve proteger seus territórios de invasores e da degradação ambiental.
Essas populações são extremamente vulneráveis a contatos imprevistos e conflitos, por não terem a mesma memória imunológica a doenças contagiosas comuns entre os não indígenas, como a gripe. Além disso, em geral, vivem em regiões remotas e de difícil acesso, o que pode inviabilizar atendimento médico emergencial. No passado, contatos forçados dizimaram grande parte de grupos inteiros em curto espaço de tempo. A possibilidade de encerramento da política de não contato preocupa organizações indígenas e da sociedade civil, que afirmam que essa é uma violação aos direitos dos isolados e um grande risco a suas vidas.
Reservas Indígenas
O PL abre caminho para que a administração federal anule parcial ou integralmente terras indígenas “Reservadas”, caso julgue que os indígenas perderam os seus traços culturais.
A “Reserva Indígena” é um tipo de TI estabelecida para assegurar a sobrevivência física e cultural de um povo indígena, mas onde não foi reconhecida, necessariamente, a ocupação tradicional conforme os conhecimentos técnicos antropológicos atuais. Isso acontece porque grande parte dessas áreas foi oficializada com base no Estatuto do Índio, de 1973. Portanto, muitas delas têm décadas de existência.
De acordo com o ISA, há hoje no país 66 áreas classificadas como áreas indígenas reservadas, com população de quase 70 mil pessoas.
“A retirada de terras por perda de traços culturais, além de ser arbitrária, confere ao Estado a prerrogativa de dizer quem é ou não indígena. Essa prerrogativa é dos próprios povos, que têm o direito fundamental de se autoidentificarem de maneira coletiva como distintos do restante da sociedade nacional. Além disso, a possibilidade poderá atualizar práticas como o integracionismo e o assimilacionismo cultural forçado, hoje vedadas pela Constituição e por tratados e declarações internacionais que estabelecem limites mínimos de dignidade e respeito para os povos indígenas”, afirma Batista.
Principais problemas do PL nº 2903
– Aplica que o “marco temporal” é um critério a ser observado a todas as demarcações de TIs, inviabilizando um procedimento já demorado;
– Estabelece que a demarcação seja contestada em todas as fases do processo administrativo, o que poderá inviabilizar sua finalização e causar tumulto processual;
– Autoriza a plantação de transgênicos em TIs, o que hoje é proibido e poderá gerar a contaminação de sementes e espécies crioulas e nativas, comprometendo a biodiversidade, o patrimônio genético e a segurança alimentar dos povos indígenas;
– Permite a retomada de “Reservas Indígenas” pela União a partir de critérios subjetivos;
– Permite a implantação nas TIs de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação” independentemente de consulta aos povos indígenas afetados;
– Põe fim à política de “não contato” com indígenas isolados. De acordo com o PL, o contato poderia ser feito com a finalidade de “intermediar ação estatal de interesse público”, por empresas públicas ou privadas, inclusive associações de missionários;
– Nas sobreposições entre territórios indígenas e Unidades de Conservação, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área.
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