Ao reduzir a vacinação prioritária apenas ao que definiu arbitrariamente como “indígenas aldeados”, o governo federal exclui grande parte da população indígena do acesso à saúde pública

Ao anunciar o início do plano de vacinação da população brasileira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, referiu-se apenas aos “indígenas aldeados”, que seriam 410.348 pessoas, segundo ele. O termo usado pelo ministro para definir quais os indígenas que tem direito à imunização prioritária nos remete ao período da ditadura militar e representa uma discriminação.

Excluir grupos indígenas do acesso à política de saúde pública é um contrassenso político e humanitário. O censo de 2010 indica a existência de quase 900 mil indígenas no Brasil; o Plano Nacional de Vacinação precisa reconhecer o total desse grupo prioritário e alcançá-lo, em sua totalidade.

Ao reduzir a vacinação prioritária apenas ao que definiu arbitrariamente como “indígenas aldeados”, o governo federal exclui grande parte da população indígena do acesso à saúde pública

Nota do CIMI:

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vem se solidarizar com a população de Manaus/AM neste momento de agravamento da pandemia do coronavírus no Brasil, levando centenas de manauaras à morte por asfixia devido à falta de oxigênio hospitalar. Este fato trágico retrata a irresponsabilidade das autoridades no âmbito do município, do estado e do governo federal no trato da pandemia, ampliando uma asfixia nacional dos poderes institucionais.

Preocupa-nos também o fato de a região Norte, com seus sete estados, concentrar a maior parte da população indígena do Brasil. O estado do Amazonas e sua capital Manaus têm grande representação de povos indígenas e são os lugares onde se concentra a maioria das mortes por covid-19. Hoje, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, 923 indígenas já perderam suas vidas em função da covid, sendo que, no estado do Amazonas, o número de óbitos chega a 216, ou seja, quase um quarto de todas as mortes.

Em 2020, o movimento indígena e indigenista, os movimentos sociais, boa parte da sociedade nacional e internacional denunciaram e clamaram para que o governo federal tomasse as medidas necessárias, tendo em vista a gravidade do contágio e do alastramento da pandemia junto aos povos indígenas nas aldeias e nas moradias em área urbana. Essa mobilização provocou o poder Legislativo, que aprovou o Projeto de Lei (PL) 1142 e, posteriormente, derrubou os 16 vetos presidenciais impostos por Jair Bolsonaro. Com a derrubada dos vetos, o PL 1142 se transformou na Lei 14021 – que, apesar de estar em vigor, durante todo o ano de 2020 não foi aplicada pelo governo federal junto às populações indígenas.

Também no Supremo Tribunal Federal (STF) foi proposta uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que foi deferida pelo pleno da Suprema Corte em agosto de 2020, mas também não foi efetivada pelo governo federal, descumprindo a decisão do STF. Todas essas decisões e medidas tinham caráter emergencial em função do agravamento do contágio e de mortes por covid-19 junto à população indígena e às populações tradicionais no Brasil.

Somente em novembro de 2020 o governo federal apresentou ao STF, cumprindo sua determinação, um Plano de Enfrentamento da Covid-19 para Povos Indígenas, através do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Neste plano, foram elencadas as providências que seriam tomadas nos territórios indígenas com propostas da APIB, Fiocruz, CNDH e CNJ, contemplando 410.348 indígenas. O plano, contudo, deixou de fora os indígenas que vivem nos centros urbanos, os quais, segundo dados do Censo do IBGE de 2010, são cerca de 46% da população indígena no Brasil.

Ao anunciar o início do plano de vacinação da população brasileira no dia 14 de janeiro, o ministro da Saúde Eduardo Pazuello, sobre os grupos prioritários, referiu-se apenas aos indígenas aldeados, que representam 410.348 pessoas, segundo o ministro. O termo usado pelo ministro, “indígenas aldeados”, nos remete ao período da ditadura militar e representa uma discriminação, onde o governo pretende definir, de forma arbitrária, quem é e quem não é índio, estabelecendo assim um conflito com a Constituição Federal, com os marcos legais nacionais e internacionais e com o movimento indígena.

Nessa situação grave de pandemia sanitária, excluir grupos indígenas do acesso à política de saúde pública é um contrassenso político e humanitário. É importante salientar que vários grupos indígenas que estão nos centros urbanos têm como um dos motivos para estarem nestes locais a expulsão dos seus territórios por invasores, portanto, um ato de violência, que não justifica sua exclusão. O fato do indígena estar fora da aldeia não faz com que ele deixe de ser indígena.

O censo populacional de 2010 indica a existência de quase 900 mil indígenas no Brasil; o Plano Nacional de Vacinação, portanto, precisa reconhecer o total desse grupo prioritário e alcançá-lo em sua totalidade

É também necessária a reflexão e a crítica à postura genocida do atual governo, que vem desestruturando toda a política indigenista com o argumento de que não existem povos indígenas no Brasil e, se existem, estes devem ser integrados à sociedade. Esta fala e atos têm como exemplo maléfico a paralisação de todo o processo de regularização dos territórios indígenas e a sua proteção, motivando o aumento das invasões, perseguição e violência contra as lideranças.

Aliás, convém ressaltar que esta postura foi antecipada pelo então candidato à presidência da república, Jair Bolsonaro, ao afirmar que “nenhum centímetro de terra indígena seria demarcado”, caso fosse eleito. E isso está sendo concretizado. A Fundação Nacional do Índio (Funai), como órgão indigenista oficial, foi totalmente descaracterizada, entregue aos interesses dos ruralistas, e passou a fazer uma política anti-indígena. A este contexto, soma-se ainda a saída dos profissionais cubanos do programa Mais Médicos, que foi desencadeada pelo discurso de ódio de Bolsonaro e gerou graves consequências para o atendimento de saúde junto à população indígena.

Estes fatos contribuíram para o agravamento da pandemia nos territórios e a total insegurança, fazendo com que os indígenas buscassem no poder judiciário a manutenção dos seus direitos que, apesar de garantidos pela Constituição Federal, sempre estão ameaçados.

A asfixia a que hoje está submetida a população de Manaus é uma triste realidade da situação política, social e econômica do país, governado por pessoas despreparadas e mal intencionadas

Salientamos que o censo populacional de 2010 indica a existência de quase 900 mil indígenas no Brasil; o Plano Nacional de Vacinação, portanto, precisa reconhecer o total desse grupo prioritário e alcançá-lo, em sua totalidade, com a política de imunização. Estudo da Universidade Federal de Pelotas aponta que a prevalência do coronavírus entre a população indígena urbana, de 5,4%, é cinco vezes maior do que a encontrada na população não indígena, que é de 1,1%. Esse planejamento, portanto, tem que ser efetivado para o bem dos povos indígenas e de todo o povo brasileiro, como estabelece a nossa Constituição Federal.

A asfixia a que hoje está submetida a população de Manaus é uma triste realidade da situação política, social e econômica do país, governado por pessoas despreparadas e mal intencionadas, com consequências trágicas para toda a população.

Conclamamos a todas e todos a continuar lutando, existindo e resistindo contra toda opressão, violência e medo, e na luta pela vida e “vida em abundância” (Jo.10,10)!

Nossa solidariedade a todas famílias e amigos dos mais de 209.000 brasileiras e brasileiros mortos pela covid-19, em especial os manauaras e os povos indígenas.

Brasília, 18 de janeiro de 2021

Conselho Indigenista Missionário

Crédito da foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá

 

 

Fonte: https://jornalistaslivres.org/indigenas/

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