Relatório que será enviado à ONU pela Articulação Nacional de Indígenas em Contextos Urbanos e Migrantes denuncia invisibilidade e genocídio desses povos

São Paulo – Eles são cerca de 325 mil brasileiros, mas são invisíveis aos olhos e às políticas públicas. De acordo com o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos mais de 800 mil indígenas no país, 38% vivem nas cidades. Além da invisibilidade, são vítimas de genocídio diante da pandemia do novo coronavírus.

Os dados constam do relatório Indígenas em Contextos Urbanos no Brasil e os Impactos da Pandemia da Covid-19, apresentado com exclusividade à Rede Brasil Atual. A pesquisa, realizada pela Articulação Nacional de Indígenas em Contextos Urbanos e Migrantes, foi proposta pelo coordenador da Rede de Investigações Sobre Indígenas Urbanos (Risiu), Jorge Horbath, pela antropóloga da Universidade de Brasília Rebecca Igreja, e pelo coordenador do projeto Indígenas na Cidade, da ONG Opção Brasil, Marcos Aguiar.

Fará parte de um estudo maior, elaborado por José Francisco Cali Tzay, Relator Especial Sobre os Direitos dos Povos Indígenas das Organizações das Nações Unidas (ONU), ainda sem data de lançamento.

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Os povos originários possuem os piores indicadores de saúde, educação e emprego. Representam 30% da população em situação de extrema pobreza, de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Cerca de 82% estão submetidos à informalidade no mundo do trabalho.

“Nesse contexto, os indígenas que vivem nas cidades são os mais vulneráveis, já que a maioria não possui condições de manter o distanciamento social”, explica o relatório que será encaminhado à ONU.

Gercídio Valeriano, pesquisador adjunto da Articulação, afirma que é difícil saber a dimensão do problema, já que se trata de uma população constantemente invisibilizada. “A subnotificação dos casos e óbitos devido ao coronavírus nas cidades coloca a vida desses indígenas em risco. Além da falta de testes, há falta de produtos de higiene, água, comida e políticas públicas que mudem a situação dessa população”, diz. “Muitos vivem de artesanato ou em trabalhos precarizados e tiveram dificuldades em conseguir o auxílio emergencial”, conta.

Vulnerabilidade

Um estudo do Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta quais são as Terras Indígenas (TI) mais vulneráveis à covid-19 no Brasil. “Ganha destaque as TIs em territórios urbanos, como é o caso da TI Tenondé Porã e da TI Jaraguá, ambas em São Paulo, a maior cidade do país e o epicentro da pandemia”, elenca o material da Articulação.

Essas áreas vivem sob recorrentes ameaças de remoção e estão em zonas sem saneamento básico, confinadas em espaços minúsculos e sem qualquer assistência por parte do Estado, contando apenas com doações e ações de organizações indígenas e não indígenas. “Vale ressaltar que além destas TIs, temos na Região Metropolitana outros mais de 60 povos, totalizando mais de 90 mil indígenas que não foram incluídos na pesquisa. Ainda conforme o estudo, a população indígena em zona urbana reside majoritariamente em municípios com alto risco para covid-19, totalizando 190.767 indivíduos nessa situação”, explica o relatório.

De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a taxa de mortalidade pela covid-19 entre indígenas é o dobro da registrada para o resto da população brasileira. Segundo estudo da Fundação Oswaldo Cruz, 48% das mortes em pacientes internados pelo coronavírus estão entre indígenas. É a maior taxa de mortalidade do país – superando as populações pardas (40%), negra (36%), amarela (34%) e branca (28%).

Genocídio

“A política genocida de Estado tem se expressado nos números assustadores que explicitam a vulnerabilidade dos indígenas durante a pandemia”, denuncia o relatório produzido pela Articulação Nacional de Indígenas em Contextos Urbanos e Migrantes.

“O relatório é de grande relevância no atual contexto, pois a população indígena no Brasil tem sido a mais afetada pela pandemia, apresentando uma taxa de mortalidade de 9,6% quase o dobro da taxa geral da população”, explica Gercídio Valeriano, pesquisador adjunto da Articulação. “Mesmo assim, o governo federal não coloca os esforços e gastos possíveis para impedir essa crise sanitária. Pelo contrário, a omissão e as políticas do governo têm causado o aumento da vulnerabilidade dos nossos povos, num projeto genocida.”

indígenas cidades
Sem acesso a políticas públicas, comunidades se ajudam com ações pontuais (Divulgação/Articulação)

O estudo menciona também a crescente criminalização dos movimentos sociais que militam na pauta indígena. “O aumento dos assassinatos de lideranças indígenas tem crescido assustadoramente no país, especialmente após a eleição de Jair Bolsonaro que representa o agronegócio e outros setores historicamente inimigos dos povos indígenas”, avalia o relatório. “Dito isto, afirmamos que não houve nenhuma medida implementada pelo governo federal para proteger os indígenas que vivem nas cidades. Afinal, as disputas territoriais são menos intensas em relação às que ocorrem no campo, portanto a opção política recai na invisibilidade e completa ausência de assistência.”

Invisibilidade

Os indígenas que moram nas cidades não contam com atendimento especializado em saúde, nem mesmo os que possuem a carteira de identificação da Fundação Nacional do Índio (Funai).

De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi) no Sistema Único de Saúde (SUS), todo atendimento é, e sempre foi, restrito aos indígenas que moram nas aldeias, relata o documento que será entregue à ONU. “Isso, embora quando criada décadas atrás havia um entendimento de que a atenção seria para o indígena independentemente da área onde estivesse. Desse modo, os sujeitos que vivem em contexto urbano estão desassistidos pelo órgão responsável pela saúde indígena no Brasil.”

O relatório informa, ainda, que os postos de saúde resistem em adotar a variável étnica nos prontuários de registros de casos prováveis e/ou suspeitos de covid-19 (notificados ou confirmados) por município, nos boletins informativos emitidos pelos comitês municipais de prevenção e combate ao coronavírus e no repasse de informações às secretarias de saúde dos estados. “Assim sendo, há uma subnotificação dos casos envolvendo indígenas que moram em contexto urbano”, afirmam os pesquisadores da Articulação.

“O racismo institucional tem feito com que muitos indígenas que procuram atendimento pelo SUS sejam registrados como pardos ou, até mesmo, brancos. Isso quando o atendimento não é recusado a este indígena. Em resumo, oficialmente, por parte do Estado, não há qualquer contabilização dos dados de indígenas contaminados ou suspeitos em contexto urbano.”

Abandono

Diante da constatação de que não há política pública voltada para indígenas que vivem nas cidades, essas comunidades se viram com ações pontuais para minimizar o impacto.

O relatório menciona o exemplo dos Pankararu, em São Paulo, que se mobilizaram para atender as comunidades indígenas do Real Parque e Jardim Panorama, além de outras regiões. “Nesta localidade, são mais de 177 famílias indígenas com mais de 2 mil indígenas.”

Em Manaus, no bairro Parque das Tribos, onde vivem mais de 700 indígenas de mais de 30 povos (Kokama, Witoto, Tikuna, Tukano, Sateré Mawé, Kotiria, Baré, Mura etc.) uma enfermeira indígena do povo Witoto atua diretamente na comunidade, de forma voluntária, tentando minimizar os impactos da pandemia e cobrando providências das autoridades. “Fizeram várias campanhas e conseguiram um Posto de saúde e um Hospital de Campanha para atuar somente com os indígenas na localidade”, informa o relatório.

O fato é que, ao migrarem para as cidades, convivem com um tipo de discriminação comum: a negação da identidade indígena. “Ao se distanciar do perfil esperado do que é ser índio (aquele que vive na floresta, distante do restante da população), eles afirmam ser tachados de aculturados, ou seja, integrados ao mundo não indígena”, explica o levantamento. “Portanto, são invisibilizados e isso se reflete na completa ausência de políticas públicas voltadas para esse grupo específico. Essa invisibilização não contempla os inúmeros fatores que motivaram o deslocamento desses povos para o contexto urbano. 1) expulsão dos territórios; 2) crescimento das áreas urbanas e a consequente aproximação com as aldeias; 3) busca por melhores condições de vida, como trabalho, educação formal, saúde etc. entre outros.”

Afirmação

O relatório, conta Gercídio, foi também uma forma de reorganizar a rede nacional, fortalecer demandas e dar voz às diferentes especificidades dos indígenas em contextos urbanos. “É o esforço coletivo de mais de 100 indígenas, contando com mais de 35 povos diferentes, e moradores de mais de 60 cidades, de 15 estados brasileiros, pertencentes às cinco regiões nacionais.”

A professora Márcia Mura trabalha para mudar essa absurda realidade. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Márcia faz parte do coletivo Mura de Porto Velho e é professora na escola Estadual Francisco Desmorest Passos, no distrito de Nazaré (RO), onde faz um trabalho de afirmação indígena.

“É preciso que sejam garantidos direitos para os povos indígenas na cidade, assim como também os dos povos que vivem nas aldeias e em outros contextos, como é comum na Amazônia ter indígena em contexto ribeirinhos. Vidas indígenas em diferentes contextos importam. Basta de genocídio!”, cobra a professora.

Leia trechos do relatório

Informalidade

Grande parte dos indígenas que vivem em contexto urbano sobrevivem na informalidade, ou em trabalhos de baixa remuneração (serviço doméstico, atendente de balcão de loja, diarista, segurança, etc.). Além disso, geram pequenas rendas com o comércio de artesanato, apresentações de canto e dança, oficinas, etc., atividades ligadas às tradições culturais indígenas.

Com o avanço das medidas de isolamento, tiveram suas fontes de renda extintas, uma vez que os eventos realizados em feiras, encontros, festas, bem como as atividades realizadas em ONGs, escolas, universidades e/ou ações promovidas junto às secretarias e governos estão suspensas.

O impacto econômico afeta diretamente o acesso aos meios de subsistência como alimentos e medicamentos. Os indígenas que recebem benefícios sociais estão com dificuldades para acessá-los, pois as filas nos bancos estão enormes e o receio de contágio aumenta o sentimento coletivo de angústia e gera insegurança em toda a comunidade.

Perdas

Muitos idosos têm falecido, o que implica na perda da memória coletiva de todo um povo, cada sujeito sente uma dor profunda que é intensificada pela proibição da realização de funerais de acordo com cada cultura.

No que se refere à educação das crianças e adolescentes, muitos estão com as aulas suspensas e dependem do acesso à internet para assistir às aulas virtualmente. Em virtude da falta de estrutura, muitos estão sem aulas integralmente.

Além disso, estudantes universitários estão impossibilitados de retornarem às aldeias e encontram-se em situação de vulnerabilidade econômica e emocional, já que muitos restaurantes universitários, dos quais dependem para se alimentar, estão com os serviços suspensos.

 

Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/07/nao-ha-politicas-publicas-indigenas-cidades/

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