Por Keka Werneck

Em Dourados (MS), indígenas questionam a construção de imóveis em área reivindicada por eles; a casa de um dos detidos, com mulheres e crianças dormindo, foi incendiada dois dias depois (Foto cedida por Marcos Morandi).


Cuiabá (MT) – Em Dourados (MS), a cidade cresce e “engole” áreas reivindicadas pelos Guarani Kaiowá. É uma luta que já dura mais de 100 anos, e está longe de ter um fim. No último dia 8 de abril, dez indígenas foram presos após participarem de um protesto contra a construção de um condomínio de luxo nos limites da zona urbana. A Tropa de Choque da Polícia Militar efetuou a prisão em flagrante. Menos de 48 horas depois, uma casa de pau a pique de uma família indígena de um dos presos foi incendiada. Mulheres e crianças dormiam no local.

O atentado na madrugada do dia 10 faz parte de uma série de violências contra os Guarani Kaiowá. Fogo, tiros, mortes, ameaças e presenças de jagunços compõem essa história. O embate com fazendeiros e contra a especulação imobiliária ficou mais intenso na última década. A área do futuro loteamento residencial, chamada pelos indígenas de tekoha (território) Yvu Vera, é reivindicada por eles, assim como o local onde ficava a residência que virou cinzas, no tekoha Aratikuty.

Os dez indígenas detidos são acusados de associação criminosa, dano ao patrimônio privado e ameaça, além de lesão corporal, posse de armas e até esbulho possessório. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), eles negaram em depoimento à Polícia Civil essas práticas e informaram que estavam no local lutando por direitos.

O juiz Rubens Petrucci Junior, da 2ª Vara Federal de Dourados, decidiu manter as prisões, revertidas de flagrantes a preventivas. Doze dias após o conflito, nove lideranças Guarani Kaiowá e Terena continuam na Penitenciária Estadual de Dourados. Apenas um idoso de 77 anos foi liberado. A Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal (MPF) pedem a soltura dos indígenas, alegando que as prisões foram arbitrárias por falta de materialidade e que houve uso de força desproporcional.

A Defensoria Pública da União apresentou um pedido de habeas corpus em conjunto com o Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica (Nupiir), Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Observatório Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Toda e qualquer prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória deve revestir-se de natureza cautelar, constituindo-se em medida excepcional, devidamente justificada pelos requisitos da cautelaridade e com a indicação da prova convincente da necessidade de custódia”, diz trecho do pedido.

Em nota à imprensa, a DPU informa que o caso foi levado às Cortes Internacionais de Direitos Humanos, por ser grave “a tentativa de criminalização” dos Guarani Kaiowá.

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Lesão corporal, furto e ameaça

A ação de prisão dos indígenas tramita na 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). No inquérito, a Defensoria Pública da União informa que vai questionar a prática dos delitos atribuídos aos indígenas pela Polícia Militar (PM).

Amazônia Real procurou a PM para questionar sobre a operação que resultou nas prisões, e, por meio de nota, a corporação disse ter sido acionada após um grupo de indígenas entrar em uma propriedade privada com o objetivo de impedir a construção do condomínio. A instituição alegou ainda que havia denúncias de que estavam agressivos e portando facas, facões e armas de fogo. “Também a referida denúncia foi para atendimento de lesão corporal, furto e ameaça, tendo em vista que o grupo ameaçou com a referida arma de fogo e lesionou um homem que é caseiro da chácara ao lado do local”, diz a corporação.

De acordo com o que foi registrado no boletim de ocorrência, ao chegarem ao local os policiais “foram recebidos com ameaças” e o grupo de indígenas não quis falar com eles. Segundo a PM, essa situação motivou a convocação do Batalhão de Choque da corporação, que se deslocou de Campo Grande (MS) até Dourados.

A reportagem tentou ouvir representantes dos indígenas sobre o protesto e as prisões, mas eles sentem medo de sofrerem outras violências devido ao histórico de uso desproporcional de força contra suas manifestações.

A empreiteira Corpal Incorporadora e Construtora afirma que a área onde pretende construir o condomínio é fruto de uma parceria com os proprietários do local. Relata, por meio de sua assessoria, que o projeto ainda é “embrionário”, não tem nome e nem campanha de vendas.

No entanto, ainda que a empresa afirme ter paralisado a obra assim que recebeu um pedido de informações do MPF sobre o loteamento, um muro de concreto estava sendo erguido no local e foi isso que levou os indígenas a protestar, pois eles se sentiram ameaçados pelo empreendimento.

Por meio de nota, a empresa afirma que prestou os esclarecimentos solicitados pelo MPF e tem as autorizações e licenças exigidas pelos órgãos responsáveis para tocar a obra. Destaca também que “mantém contato permanente e diálogo aberto com representantes das comunidades indígenas residentes nas áreas vizinhas ao empreendimento.” E afirma que tem o compromisso de gerir um negócio que “promova o bem-estar da população e contribua para o crescimento sustentável das cidades”. A empreiteira nega qualquer relação com o incêndio na casa no tekoha Aratikuty.

A empresa possui 30 empreendimentos já lançados, outros 30 em desenvolvimento e cerca de 10 mil clientes em seis Estados do Brasil. A Reserva de Dourados fica a apenas cinco quilômetros da área urbana. Também ficam próximas as áreas reivindicadas pelos Guarani Kaiowá, como os tekohas Yvu Vera e Aratikuty.

Insuficiência de espaço

Área do futuro loteamento tekoha (território) Yvu Vera do povo Guarani Kaiowá (Foto cedida por Marcos Morandi)

A defensora regional de Direitos Humanos no Mato Grosso do Sul, Daniele Osório, explica que a Reserva Indígena de Dourados possui uma das maiores concentrações de indígenas do País e, por causa da insuficiência de espaço territorial e dos conflitos internos, a comunidade busca a retomada de suas terras tradicionais nas redondezas, ocasionando desentendimentos com proprietários rurais e, nos últimos tempos, com empreiteiros.

Para ela, não existem os requisitos (neste caso) para prisão preventiva dos indígenas. “Essa é uma medida extrema, que só deve ser decretada quando existem motivos que a justifiquem”, afirma.

Segundo a defensora, os indígenas ainda não foram sequer denunciados oficialmente pelos supostos crimes atribuídos a eles. Além disso, nem o MPF, responsável pela acusação nas ações penais, nem o delegado que registrou as prisões em flagrante solicitaram as prisões preventivas.

“Entendemos que o juiz não poderia, sem haver pedido dessas duas partes do processo, ter decretado a prisão de ofício”, avalia a defensora. “Eles não foram denunciados ainda, existe apenas uma análise preliminar. A autoridade policial apontou crimes que talvez não se concretizem numa ação penal.”

Além das prisões, o incêndio na casa da família indígena aumenta o clima de tensão e medo na região. O coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, Matias Benno Rempel, afirma que alguns ataques a indígenas são possíveis de identificar, como em casos de envolvimento de fazendeiros e até do Estado. Em outros casos, essa identificação é mais difícil.

Atentados contra os indígenas

Ataque aos Guarani Kaiowá em 2016 Dourados-MS. (Foto: ASSEJUR- CIMI)

Levantamento do Cimi aponta alto número de atentados contra os Guarani Kaiowá, principalmente no período entre 2015 e 2016, quando foram registradas ao menos quatro ocorrências violentas por mês. Em 2015 foi assassinado o líder Guarani Kaiowá Simeão Vilhalva, no tekoha Nhenderú Marangatu, em Antônio João (MS), a 130 km de Dourados. Em 2016, uma ação paramilitar realizada por fazendeiros na região de Caarapó (MS) resultou no assassinato do jovem Clodieldo de Souza Guarani-Kaiowá, aos 26 anos. No atentado, mais seis pessoas foram feridas à bala, inclusive uma criança de 12 anos baleada no abdômen.

Em 2021, o indígena Guarani Kaiowá Vitorino Franco, de 37 anos, foi espancado por jagunços. “Eles já chegaram batendo e xingando, chamando de vagabundo, que só queremos roubar a terra deles e que a gente tinha que morrer”, narrou. Ele levou uma “bicuda na barriga” e pancadas com a arma na cabeça. Foram tantos golpes que o indígena desmaiou e só acordou no dia seguinte, jogado na vala de uma rodovia.

Em 2022, no auge da política antiindigenista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), no mês de junho, o indígena Guarani Kaiowá Vítor Fernandes, de 42 anos, foi assassinado por policiais militares no tekoha Guapoy Mirim Tujury, em Amambai (MS). E em julho, a liderança Guarani Kaiowá Leila Rocha, de 61 anos, foi ameaçada de morte ao se opor aos arrendamentos ilegais que têm ocorrido na retomada da Tekoha Yvy Katu, em Japorã (MS). “Eu caio morta aqui, mas não saio, não arredo o pé da terra de meus ancestrais e vocês não vão tocar os seus dedos sujos no meu território”, afirmou em resposta aos arrendatários.

O indigenista Matias Benno Rempel, do Cimi, explica que o conflito em questão é secular e remonta ao período entre 1910 e 1940, quando os indígenas foram removidos do território originário, visados para a agropecuária, e levados para a Reserva de Dourados. Desde então, nunca houve paz ou concordância com essa medida e a insatisfação perdura até os dias de hoje. A insatisfação é expressa inclusive através do alto índice de suicídios na região. “Eles seguem resistindo de diversas formas nessa luta desigual, é muito complicado”, lamenta Matias.

Os indígenas em Dourados vivem cercados por um entorno racista, tanto na reserva como em áreas de retomada. Além da violência explícita, eles encontram dificuldades para conseguir trabalho e enfrentam a insegurança alimentar. Lutam para sobreviver.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/guarani-kaiowa-presos/

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