‘Tudo o que a gente retomou está morrendo’, diz líder de terra indígena anulada pelo STF com base no marco temporal

Murilo Pajolla

Indígenas da comunidade Guyraroká protestam no Supremo contra anulação da portaria declaratória – Divulgação/Cimi

O quase centenário Tito Vilhalva respirou aliviado quando, em 2009, o ministério da Justiça declarou a retomada Guyraroká como de posse permanente dos Guarani Kaiowá. A portaria, que é uma das últimas fases do processo de demarcação, deu ao ancião a segurança de que seus descendentes poderiam viver no mesmo chão onde pisaram seus ancestrais, um direito previsto na Constituição.

Mas o alívio se transformou em apreensão em 2014, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a portaria declaratória a pedido de um fazendeiro da região. Sem qualquer consulta aos moradores da comunidade afetada, a decisão se fundamentou no marco temporal das terras indígenas, tese jurídica que volta a ser analisada pelo STF nesta quarta-feira (20).

“Se houver uma aprovação do marco temporal, vai subir a porcentagem dos ataques. Então eu acho que pode piorar sim. Eu me preocupo porque temos crianças, temos idosos. A gente tem que dormir com um olho aberto e outro fechado todas as noites”, disse Erileide Domingues, líder Guarani Kaiowá da comunidade Guyraroká.

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Neta do ancião Tito Vilhalva e alvo de ameaças de morte, Erileide teme que os cerca de 90 indígenas da comunidade Guyraroká percam o direito à demarcação, caso o marco temporal seja validado. Ela diz que os fazendeiros estão preparados para, caso saiam vitoriosos no STF, entrar na justiça e estender a anulação para centenas de outras retomadas.

A líder prevê que muitos indígenas irão resistir ao despejo e se transformarão em alvo preferencial para as milícias rurais, em meio a um sangrento conflito que deixou centenas de Guarani Kaiowá mortos nos últimos 20 anos, além de provocar contaminações por agrotóxicos.

“Guyraroká foi retomada em 1999 e é como se ela fosse um símbolo para as outras retomadas. A gente diz que é o tronco mais velho delas. As outras frutas [retomadas] estão todas ao redor, penduradas no pé. Se Guyraroká cair, todas vão cair juntas.”

Por que o marco temporal é usado mesmo antes da validação no STF

Mesmo sem validação pelo STF, o marco temporal tem sido usado por fazendeiros para questionar a demarcação de terras indígenas na Justiça. Se for declarada a constitucionalidade da tese jurídica, a situação será ainda pior: tribunais de todas as instâncias no país terão que seguir o entendimento fixado pelo Supremo, já que o julgamento é classificado como de repercussão geral.

Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que faz a defesa dos Guarani Kaoiwá de Guyraroká, explica que o uso do marco temporal se tornou possível a partir do julgamento da demarcação Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) deu ganho de causa aos indígenas, mas apontou a data da promulgação da Constituição como marco temporal que deveria validar as demarcações.

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“A tese do marco temporal não foi aplicada no caso da Raposa Serra do Sol. Algumas pessoas fizeram uma ressignificação, uma extração de pequenos excertos [trechos] e uma ruptura com a unidade lógica do julgado. Esses excertos interessavam a pessoas que queriam construir uma tese para anular demarcações. E quando a gente percebeu os juízes já estavam convencidos pelo setor ruralista de que o marco temporal seria a resolução do conflito”, disse o advogado.

Modesto diz que não é possível afirmar quantas terras indígenas poderiam ter a demarcação anulada na justiça em caso de validação do marco temporal, mas estima que a mudança afetaria 90% dos cerca de 200 territórios em fase de estudo, em todo o Brasil.

17 das 19 TIs em estudo no MS são questionadas na Justiça

A aplicação do marco temporal seria especialmente perversa no Mato Grosso do Sul, estado marcado por um cenário permanente de violência contra os Guarani Kaiowá. No episódio mais recente, um casal de rezadores foi assassinado por um homem que ateou fogo na casa onde as vítimas viviam.

Historicamente, os indígenas ocupavam largas porções de terra em toda a região sul do Mato Grosso do Sul. No início do século 20, o Estado estimulou a venda das terras na fronteira com o Paraguai. A expulsão dos indígenas foi potencializada pelo incentivo à chegada de colonos durante o governo Getúlio Vargas.

O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão indigenista que antecedeu a Funai, confinou indígenas em pequenas reservas e liberou grandes porções de terras para a colonização. A partir dos anos 2000, o crescimento populacional obrigou os indígenas a promoverem retomadas, com o objetivo de pressionar o Estado brasileiro a agilizar os processos demarcatórios. Sem terras suficientes, a insegurança alimentar se espalhou e transformou indígenas em reféns do trabalho pesado nas fazendas.

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Em muitos casos, as retomadas são a origem do processo demarcatório conduzido pela Funai. Conforme o órgão indigenista, o Mato Grosso do Sul tem 19 terras indígenas em estudo por Grupos de Trabalho de identificação e delimitação, das quais 17 são questionadas na justiça. Segundo o Cimi, a adoção do marco temporal inviabilizaria a continuidade das demarcações.

Na defesa dos indígenas, o setor jurídico do Cimi recorreu ao STF e conseguiu reverter temporariamente a anulação da terra indígena Guyraroká. Caso o marco temporal seja declarado constitucional pelo Supremo, a demarcação poderá nunca ser concluída. “Sem o reconhecimento do Estado brasileiro, tudo o que a gente retomou vai morrer e está morrendo a cada dia mais”, diz Erileide Domingues, líder da comunidade Guyraroká.

Edição: Nicolau Soares

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2023/09/20/validacao-do-marco-temporal-pode-agravar-violencia-contra-os-guarani-kaiowa-temem-indigenas-stf-retoma-julgamento-nesta-quarta

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