Tribunal suspendeu reintegração de posse contra a aldeia Novos Guerreiros, determinada pela Justiça Federal de Eunápolis em plena pandemia e contra decisão do STF

POR RENATO SANTANA E TIAGO MIOTTO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO – CIMI

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) suspendeu na noite de quarta-feira (2) reintegração de posse que seria executada nos próximos dias contra os Pataxó da aldeia Novos Guerreiros, Terra Indígena (TI) Ponta Grande, localizada em Porto Seguro, extremo sul da Bahia. Para a desembargadora Daniele Maranhão Costa, a decisão impugnada contrastava com determinação recente do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 6 de maio, o ministro Edson Fachin suspendeu até o término da pandemia do novo coronavírus processos judiciais que podem causar prejuízo aos direitos dos povos indígenas, incluindo reintegrações de posse. A decisão ocorreu no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365/SC, que possui caráter de repercussão geral e definirá a posição do STF acerca do direito originário dos povos indígenas sobre seus territórios.

A reintegração contra a aldeia Novos Guerreiros havia sido determinada pela Justiça Federal de Eunápolis a partir de uma audiência de conciliação entre os impetrantes da ação, proprietários de um Clube de Aviação, representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Ministério Público Federal (MPF). Mesmo qualificada no processo, a comunidade Pataxó não sabia da ação e tampouco participou da audiência.

“Conseguimos fazer a defesa da comunidade diante da decisão absurda pela retirada e remoção de 24 famílias indígenas da aldeia Novos Guerreiros. É uma importante vitória. O despejo cassado fere diretamente uma decisão da Suprema Corte. Mesmo que a terra ainda não esteja demarcada, não deixa de ter uma ocupação tradicional”, afirma a advogada da comunidade Samara Carvalho Santos Pataxó, assessora do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba).

Foi a partir do pedido judicial feito pela comunidade ao TRF-1 que a reintegração de posse acabou suspensa. Na decisão, a desembargadora Daniele Maranhão Costa destacou que o território Pataxó alvo da ordem de despejo encontra-se em processo de demarcação.

Desde 2017, há um Grupo de Trabalho multidisciplinar elaborando o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (Rcid) da TI Ponta Grande. Como a demanda territorial vinha se arrastando desde 2013, a própria Justiça Federal determinou que a Funai realizasse o procedimento demarcatório e acabasse com a insegurança jurídica gerada tanto para os Pataxó quanto para os ocupantes não indígenas do território tradicional.

“A posse permanente sobre as terras tradicionalmente ocupadas é uma garantia constitucional dos índios, sendo a demarcação uma forma de resguardar referido direito e de cunho meramente declaratório, buscando assim proteger a cultura, os costumes e as tradições indígenas”, reforça a desembargadora.

Para desembargadora, fragilidades na documentação dos autores da ação de reintegração de posse indicam que eles “não teriam legitimidade para o ingresso da ação possessória”

Desde a determinação do despejo, os Pataxó mantiveram-se mobilizados na aldeia Novos Guerreiros. Foto: Thyara Pataxó

Desde a determinação do despejo, os Pataxó mantiveram-se mobilizados na aldeia Novos Guerreiros. Foto: Thyara Pataxó

Autores da ação não teriam legitimidade

Para a magistrada, há elementos indicando que os indígenas vivem na referida propriedade “desde tempos imemoriais” e dependem dela para sua sobrevivência. Por outro lado, ela avalia que a documentação apresentada pelos autores da ação que quase resultou no despejo da aldeia indica que eles “aparentemente não teriam legitimidade para o ingresso da ação possessória”.

Ela expõe na decisão diversas fragilidades desta documentação. A certidão de registro juntada como prova da propriedade, por exemplo, estava incompleta e não era suficiente para comprovar que eles seriam os proprietários da área.

O mesmo ocorreu com um documento de “cessão de termo de posse” outorgado aos autores da ação pelo beneficiário de um comodato que incidiria sobre a área em disputa. No entanto, essa incidência, na avaliação da desembargadora, também não é clara.

Além disso, “não se trata de documento público e não teve as firmas das assinaturas reconhecidas”, assinala a desembargadora. “Portanto, pouco valor probatório merece, especialmente quando contrastado com todo o acervo probatório em favor da comunidade indígena”.

Outro ponto questionado na decisão é o fato de que, na audiência de justificação, os próprios autores afirmam que a “invasão” da área pelos Pataxó teria ocorrido há cerca de quatro anos – o que, argumenta Daniele, significa que a posse não é considerada nova e impede que a reintegração seja deferida por meio de liminar, como ocorreu.

“O juiz Federal de Eunápolis entendeu que a decisão do Fachin não se aplicava aos Pataxó porque a área não era homologada. A desembargadora rechaça o argumento dizendo que processo de demarcação é meramente declaratório dos direitos originários”

Comemoração na aldeia Novos Guerreiros, depois que a suspensão do despejo foi confirmada. Foto: Thyara Pataxó

Comemoração na aldeia Novos Guerreiros, depois que a suspensão do despejo foi confirmada. Foto: Thyara Pataxó

Suspensão de despejos é obrigatória

Para a assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Lethicia Reis de Guimarães, que colaborou com a peça judicial de defesa da aldeia Novos Guerreiros junto com o Mupoiba, um fato a ser destacado do despacho da desembargadora é que a suspensão nacional das reintegrações de posse contra indígenas é obrigatória, independentemente da situação fática.

“O juiz Federal de Eunápolis entendeu que a decisão do (ministro) Fachin não se aplicava aos Pataxó porque a área não era homologada. A desembargadora rechaça o argumento dizendo que processo de demarcação é meramente declaratório dos direitos originários. Ela enfatizou também que as provas juntadas pelos autores da reintegração de posse têm pouco valor, uma vez que não são documentos públicos”, analisa Lethicia.

A ação que resultou na decisão da desembargadora foi um Agravo de Instrumento, interposto na segunda instância em nome dos Pataxó da aldeia Novos Guerreiros. Este recurso foi utilizado porque, apesar de terem garantido pela Constituição o seu direito a participar de processos judiciais que os afetem, os indígenas não eram reconhecidos como parte na ação de reintegração de posse contra sua aldeia.

“O Agravo de Instrumento é uma ação autônoma. Foi aberta uma nova ação, em nome da comunidade, representando os Pataxó. Mas eles ainda estão sem representação na ação originária”, explica Lethicia.

A desembargadora abriu prazo no agravo de instrumento para ouvir os impetrantes da ação de reintegração e, na primeira instância, o processo segue seu curso normal: será aberto o prazo para contestação e eventualmente uma sentença confirmando ou não a reintegração de posse.

Para a assessora jurídica do Cimi, a participação da Funai na continuidade do processo, porém, está indefinida. “Como não é parte, a comunidade indígena estava sendo representada pela Funai até então. Mas com essa novo ofício interno do presidente do órgão (que impede assistência jurídica ao que classifica como grupos e comunidades de ‘indígenas integrados’), não sabemos se a Funai vai se retirar do processo ou vai continuar até a sentença”, explica.

Além do agravo interposto pelos advogados da comunidade Pataxó e deferido pelo TRF-1, outros aliados dos indígenas atuaram para reverter a ordem de despejo.

O partido Rede Sustentabilidade e a Defensoria Pública da União (DPU) pediram que o ministro Edson Fachin, relator do processo de repercussão geral no STF, comunique a Justiça Federal de Eunápolis a respeito da obrigatoriedade da suspensão das reintegrações de posse contra indígenas.

A DPU também havia feito uma reclamação ao STF, indicando à Corte o descumprimento da determinação do STF sobre o tema. No dia seguinte à suspensão do despejo pelo TRF-1, o ministro Gilmar Mendes também atendeu ao pedido da DPU, destacando que a decisão da Justiça Federal de Eunápolis “violou a autoridade da determinação” do STF.

“A pretensão de tradicionalidade dos Pataxó sobre esse território é bem anterior a esse processo de grilagem e de apropriação dessa área por terceiros. Os Pataxó jamais desistiram desse pleito”

Manifestação Pataxó e Tupinambá em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Manifestação Pataxó e Tupinambá em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

HISTÓRICO DE GRILAGEM E ESBULHO DAS TERRAS PATAXÓ

A relação dos Pataxó com o território Ponta Grande remonta ao período colonial e passou, ao longo dos séculos, por processos intensos de violação, esbulho e grilagem de terras, explica o antropólogo José Augusto Laranjeira Sampaio, integrante da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai) e professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).

“Este é um território inserido no que as fontes históricas identificam como tendo sido de ocupação dos Pataxó no período pré-colonial e durante todo o período colonial, até o início do século XIX, quando eles foram enfim contatados e reduzidos pelo regime colonial”, explica José Augusto, conhecido como Guga.

Este território histórico abrangia praticamente todo o extremo sul da Bahia e se extendia desde a costa do Atlântico até a Serra dos Aymorés, no limite com o estado de Minas Gerais – território que era compartilhado pelos Pataxó com os Maxakali, “parentes próximos seus”, recorda Guga.

“A redução colonial dos Pataxó os levou, em meados do século XIX, a serem concentrados compulsoriamente em praticamente um único aldeamento, a aldeia de Barra Velha, que é tida como a aldeia mãe dos Pataxó em função desse constrangimento histórico. Entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, os Pataxó estiveram confinados ali, em seu entorno imediato e em algumas outras pequenas povoações, na bacia do rio Cahy e em Cumuruxatiba”, prossegue o antropólogo.

O episódio histórico do “fogo de 1951” e a criação do Parque Nacional do Monte Pascoal sobre o território Pataxó, dez anos depois, provocaram movimentos de dispersão do povo, os quais coincidiram, já no início da década posterior, com a abertura das rodovias federais BR-101 e BR-367. A integração rodoviária favoreceu a expansão da exploração madeireira e a explosão do mercado de turismo na região.

“A tradicionalidade é um fato jurídico que remete ao passado, mas que se configura no presente”

“Os Pataxó foram atraídos e direcionados, já sem território, para a produção e comércio de artesanato atendendo ao turismo crescente. Assim eles retornam para a região de Porto Seguro e volta a fazer uma comunidade, Coroa Vermelha, onde fica também a Ponta Grande. Alguns Pataxó já residiam nessa área, mas eles voltam a formar a comunidade nessa região no início dos anos 1970. Ao voltar e formar uma comunidade, eles reocupam um territírio vazio, não havia ocupantes. Era terra pública”, discorre o antropólogo.

A reconstrução da comunidade Pataxó no local permite, também, o retorno a seu modo de vida tradicional. “A tradicionalidade é um fato jurídico que remete ao passado, mas que se configura no presente. No presente é que se examina o fato da tradicionalidade da ocupação. Com o exame do presente, os Pataxó reconstituíram seu território e reconstruíram isso em um território livre de outros ocupantes, portanto perfeitamente disponível para que eles desenvolvessem seu modo de vida tradicional”, analisa Guga.

Apesar de ter contribuído, por meio dos incentivos à indústria do turismo, para atrair os Pataxó de volta a essa parte de seu território histórico, o Estado não apenas não reconheceu seu direto sobre a área como, pelo contrário, favoreceu a oferta dessas terras para o mercado imobiliário que se estruturava na região.

“Eram terras altamente valorizadas, e várias empresas grilaram essa terra de ocupação tradicional pataxó, com a conivência de prefeituras, de cartórios. Até hoje existem os documentos de que esses supostos proprietários dispõem que são extremamente frágeis, com se verificou agora na decisão do TRF-1”, avalia Guga. “A pretensão de tradicionalidade dos Pataxó sobre esse território é bem anterior a esse processo de grilagem e de apropriação dessa área por terceiros. Os Pataxó jamais desistiram desse pleito”.

Nos anos 1990, a tentativa de pacificar a situação conflituosa na região fez com que os Pataxó conquistassem a demarcação da TI Coroa Vermelha, em áreas que estavam sob sua posse.

“O território da Ponta Grande, que é vizinho, nesse momento não tinha ocupação Pataxó, eles tinham sido esbulhados pelo processo de grilagem e estavam refugiados em terras próximas. Depois do ano 2000 e na década atual, os Pataxó foram retomando essas áreas”, sintetiza o antropólogo.

Foram seis retomadas deste território, as quais deram origem, além da aldeia Novos Guerreiros, às aldeias Itapororoca, Mirapé, Miraleite, Nova Coroa e Vila Camaiurá.

“Estimo que tenham mais de 2000 ocupantes indígenas nelas. Só que essas retomadas estão embaralhadas territorialmente com essas áreas de grilagem, onde há pousadas, condomínios de veraneio e até esse Clube de Aviação. Mas o pleito territorial tem esse histórico e tem essa base”, resume Guga.

Na avaliação do antropólogo, o longo histórico de esbulho e apropriação privada dos territórios Pataxó, hoje, também se aprofunda por medidas do próprio governo federal, como é o caso da Instrução Normativa (IN) 09, por meio da qual a Funai autorizou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas ainda não homologadas. A medida já afetou diretamente as TIs Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá, do povo Pataxó, além das TIs Tupinambá de Olivença e Tupinambá de Belmonte.

“[A IN 09 é] uma renovação, novamente durante um período de governo autoritário, do que aconteceu justamente no outro período de governo autoritário. Os regimes autoritários favorecem e promovem grilagem de terra pública em desfavor do direito indígena. A Ponta Grande foi vítima nas décadas de 1970 e 1980 e agora ocorre novamente, mas em áreas identificadas”, analisa o pesquisador.

 

 

Fonte: https://cimi.org.br/2020/09/apos-intensa-mobilizacao-despejo-contra-aldeia-pataxo-suspenso/

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