POR MOBILIZAÇÃO NACIONAL INDÍGENA, ADAPTADO PELA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO COMIN

Em um contexto em que ataques do governo federal ameaçam os direitos indígenas e, no legislativo, projetos e bancadas contrários aos povos indígenas se sobressaem, os olhares e as esperanças de garantir que os direitos constitucionais dos povos originários não sejam desfigurados se voltam ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Está previsto, para o próximo dia 28, o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata da reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra a demarcação da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, do povo indígena Laklãnõ-Xokleng. Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do caso, o que significa que a decisão tomada neste julgamento terá consequências para todos os povos indígenas do Brasil, pois será referência para os processos demarcatórios em todas as instâncias do Judiciário.

O julgamento coloca em xeque a tese do marco temporal e a defesa de que os povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam na data de promulgação da Constituição Federal – 5 de outubro de 1988. A Suprema Corte poderá, assim, dar uma solução definitiva aos conflitos envolvendo terras indígenas no país.

Na mesma data, o STF discutirá se mantém ou não a medida cautelar deferida pelo ministro Edson Fachin, em maio deste ano, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), instrumento usado para institucionalizar o marco temporal como norma no âmbito dos procedimentos administrativos de demarcação.

Entenda do que se trata este julgamento e o que está em jogo.

Do que trata o RE 1.017.365?

O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada – e já identificada – como parte de seu território tradicional.

A terra em disputa, onde vivem também indígenas dos povos Guarani e Kaingang, é parte do território Ibirama-Laklãnõ, que foi reduzido ao longo do século XX. As pessoas indígenas nunca deixaram de reivindicar a área, que foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.

Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?

Em decisão publicada no dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do Judiciário.

Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre terras tradicionais que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.

Quando ocorrerá o julgamento?

O julgamento foi colocado na pauta do STF do dia 28 de outubro de 2020 pelo novo presidente da Corte, o ministro Luiz Fux. Ele ocorrerá de forma telepresencial, ou seja, por meio de um sistema de votação virtual, por vídeo, que substituiu sessões presenciais em função da pandemia da Covid-19. As sustentações orais também ocorrerão telepresencialmente. As partes devem se manifestar em até 15 minutos cada.

Além delas, os amici curiae ou “amigos da corte” terão, ao todo, 30 minutos para sustentação oral – tempo que deverá ser dividido entre aquelas e aqueles que tiverem interesse em se manifestar.

O que está em jogo?

No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito a terra. Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante às e aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Do outro lado, há uma proposta mais restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado “marco temporal”. Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas, em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol e que igualmente restringem a posse e o usofruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.

O que é marco temporal?

O marco temporal é uma tese que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988 ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.

Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), essa é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Civil- Militar. Além disso, essa posição ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988”.

Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?

Caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rechace definitivamente a tese do marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução, assim como dezenas de processos judiciais poderão ser imediatamente resolvidos. As 310 terras indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.

Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar o esbulho e as violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas. Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho possessório a terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.

Além disso, há referências de povos indígenas isolados ainda não reconhecidas pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política de não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, pois sequer sabemos onde eles estão. Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.

Os povos indígenas participarão do julgamento?

O relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados no tema, dada a importância da matéria. Tal participação se dará a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa “amigo da corte” e que permite que pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema contribuam subsidiando o tribunal com informações. Quase 40 amici curiae foram admitidos e estão habilitados a contribuir no processo – entre eles, o COMIN-FLD e muitas comunidades e organizações indígenas.

Além disso, a própria comunidade Xokleng também é parte no processo, tendo em vista que é diretamente afetada por ele. Usufruindo do direito de acesso à Justiça que foi assegurado aos povos indígenas pela Constituição de 1988, o povo Xokleng também se manifestará no julgamento.

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