Frederico Vasconcelos

Punido por sua atuação progressista como bispo de São Félix do Araguaia (MT), dom Pedro Casaldáliga — que morreu neste sábado (8), aos 92 anos– narrou, em duas entrevistas por telefone em 2005, como foi recebido no Vaticano pelo polonês Karol Wojtyla, e interrogado pelo alemão Joseph Ratzinger.

A primeira entrevista foi concedida ao editor deste Blog quando João Paulo 2º morreu; a segunda, dias depois, quando o Papa Bento XVI, foi confirmado sucessor.

“No pontificado de João Paulo 2º, a Cúria foi dura. E às vezes, com todo o respeito, acho que foi até injusta com os teólogos da libertação”, disse Casaldáliga.

O bispo foi punido nos anos 80 com o “silêncio obsequioso”.

A desarticulação da igreja progressista no Brasil se processou através da divisão de arquidioceses -com a redução do poder de lideranças –como d. Paulo Evaristo Arns, em São Paulo, e d. Hélder Câmara, em Recife– e de “penas canônicas”, punições para silenciar figuras expressivas da Teologia da Libertação, como os irmãos Leonardo Boff e Clodovis Boff.

Depois de Casaldáliga ter sido interrogado por cardeais no Vaticano, Karol Wojtyla o abraçou e disse em português: “É para que veja que não sou nenhuma fera”.

Na segunda entrevista, semanas depois, o bispo catalão disse que, durante o interrogatório com o “cardeal de ferro”, houve momentos de tensão e alguns momentos de humor.

“Um dos cardeais sugeriu que eu não falasse com os jornalistas. Não foi o Ratzinger. Eu disse que achava oportuno falar. ‘Se eu não conto o que tem acontecido aqui, os jornalistas vão ter que inventar’”, disse.

“Estávamos um pouco tensos. Eu falei: ‘A igreja guarda segredo demais’”.

Então com 77 anos, Dom Pedro Casaldáliga, não esmorecia: “O reino de Deus continua. Passa bispo, passa papa, passa príncipe, passa rei. Nós devemos continuar nosso trabalho com muita esperança, relativizando o que é relativo. E não desanimar por nada.”

O bispo mantinha um excelente humor. Sofrendo do mal de Parkinson, hipertenso e sobrevivente a várias operações e a 18 ataques de malária, ele assim se definiu:

Sou um “cavalo velho, um pouco cansado”.

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Leia a íntegra das duas entrevistas:

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Pontífice foi duro, diz d. Pedro Casaldáliga

D.Pedro Casaldáliga, 77, punido durante o pontificado de João Paulo 2º por sua atuação progressista como bispo de São Félix do Araguaia (MT), não acredita numa mudança significativa na igreja: “Minha impressão é que a imensa maioria dos cardeais é de uma linha mais ou menos conservadora, de continuidade”.

Casaldáliga diz que a igreja foi “dura” e “injusta” com os teólogos da libertação e que as ações em favor das minorias, pelas comunidades eclesiais de base, foram vistas pelo Vaticano com “desconfiança” e “reticência”.

No sábado à noite, ele rezou pelo papa: “Tenho confiança de que ele está na glória”. Sofrendo do mal de Parkinson, a mesma doença que afligiu João Paulo 2º , hipertenso e sobrevivente a várias operações e a 18 ataques de malária, d. Pedro Casaldáliga mantém o bom humor. Diz que é um “cavalo velho, um pouco cansado”.

O bispo espanhol relembra o encontro com o papa de origem polonesa, após ter sido interrogado por cardeais no Vaticano. Karol Wojtyla o abraçou e disse em português: “É para que veja que não sou nenhuma fera”.

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Folha – Qual é a sua esperança em relação ao futuro pontificado?

Pedro Casaldáliga – Vou ser bem sincero. Eu não tenho esperança de uma mudança significativa. Minha impressão é que a imensa maioria dos cardeais é de uma linha mais ou menos conservadora, de continuidade, sobretudo no [aspecto] teológico, no canônico, dentro da igreja. Mas cada papa tem um estilo. De vez em quando acontecem surpresas…

Folha – O sr. tem pregado uma revisão do exercício do papado e do poder da Cúria. Quais seriam as principais mudanças?

Casaldáliga – Fundamentalmente, que o Vaticano deixasse de ser Estado. O papa deixaria de ser chefe de Estado. Que a Cúria se simplificasse o mais possível, e se concedesse mais autonomia às conferências episcopais, às igrejas particulares, ou seja, as dioceses, as prelazias. Que se estimulasse o ecumenismo, um diálogo entre as religiões e entre as culturas, sobretudo no Terceiro Mundo.

Que houvesse uma atitude de sensibilidade máxima com o sofrimento da humanidade, de cooperação com todas as entidades que lutam pela justiça, pela paz, pela ecologia. E que se atendesse melhor às reivindicações dos leigos, sobretudo no que se refere à mulher. Uma confiança maior com respeito aos servos que abrem caminhos, seja na Teologia da Libertação, na teologia feminista, na teologia negra, na teologia indígena, no diálogo interreligioso.

Folha – Como foi o pontificado de João Paulo 2º, nesse aspecto?

Casaldáliga – No pontificado de João Paulo 2º, a Cúria foi dura. E às vezes, com todo o respeito, acho que foi até injusta com os teólogos da libertação, da inculturação e do diálogo interreligioso.

Folha – O pontificado muito longo é ruim para a missão da igreja?

Casaldáliga – Eu continuo achando que os papas, como os bispos, deveriam renunciar numa idade determinada. Eu não acredito em cargos vitalícios, nem na sociedade nem na igreja.

Folha – Quais foram os reflexos da igreja de João Paulo 2º sobre a sua prelazia e sobre a sua atividade?

Casaldáliga – Só desconfiança com respeito à Teologia da Libertação. E só reticência com respeito às comunidades eclesiais de base. Houve um relacionamento tenso entre o Vaticano e a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros]. Entre a igreja da libertação da América Latina e o Vaticano. Por outra parte, o próprio papa mandou à assembleia da CNBB aquela famosa carta na qual dizia que a Teologia da Libertação era não só útil, mas necessária.

Folha – Como foram os seus contatos pessoais com ele?

Casaldáliga – Estive com ele em várias ocasiões. Fiz uma visita, depois de ter escrito uma carta longa. Foi na década de 80…

Folha – Como ele o recebeu?

Casaldáliga  – Com bastante atenção. Eu já havia sido interrogado pelos cardeais sobre vários pontos. O papa tinha todo dossiê das minhas interrogações. Conversamos um pouco…

Folha – O que ele disse?

Casaldáliga – Ele teve um gesto. Num momento determinado, ele abriu os braços, como quem quer mostrar o desarme, e falou, em português: “É para que veja que não sou nenhuma fera”.

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Casaldáliga conta como Ratzinger o interrogou

Pedro Casaldáliga, 77, um dos expoentes da Teologia da Libertação no Brasil, conheceu o lado mais temido do novo papa. Em 1986, o bispo brasileiro foi interrogado pelo cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Foi explicar sua ação em defesa dos pobres, dos negros e dos índios em São Félix do Araguaia.

(…)

Folha – O novo papa o interrogou?

Pedro Casaldáliga – Sim. Os interrogatórios foram com o cardeal Ratzinger e outros dois cardeais.

Folha – Como começou?

Casaldáliga – Eu me negava a fazer a visita a Roma que os bispos devem fazer a cada cinco anos. Eles reclamaram. Eu escrevi uma carta ao papa, explicando, e com muitas reivindicações, a respeito do sacerdócio, da participação da mulher… Passei por longo interrogatório.

Folha – O que perguntaram?

Casaldáliga – Sobre a Teologia da Libertação, sobre a Missa dos Quilombos, minhas visitas à Nicarágua, a liturgia…

Folha – Como era o clima?

Casaldáliga – Houve momentos de tensão e alguns momentos de humor. Devo reconhecer que Ratzinger é um intelectual. É um homem sério, de princípios. É retraído, não tem a projeção midiática de João Paulo 2º.

Folha – Como foi o comportamento dele? Estava calmo, sereno?

Casaldáliga – Eles perguntam e esperam a resposta. Retrucam. Eu me senti com bastante liberdade. Tive liberdade para falar. Depois, foi entregue ao papa o dossiê com todas as acusações. Eu fui chamado para conversar pessoalmente com o papa durante 15 minutos. Ele insistiu na unidade da igreja, reconheceu os problemas sociais do Brasil, sobretudo da nossa região, rezou pelos perseguidos…

Folha – No interrogatório, houve algum episódio curioso?

Casaldáliga – Um dos cardeais sugeriu que eu não falasse com os jornalistas. Não foi o Ratzinger. Eu disse que achava oportuno falar. “Se eu não conto o que tem acontecido aqui, os jornalistas vão ter que inventar”, disse. Como saíram notícias, novamente fui chamado. O mesmo cardeal perguntou quanto tempo eu tinha estado com o papa. Eu respondi: 15 minutos. “Foi tempo perdido”, disse ele. “Porque o sr. falou para os jornalistas e estão espalhando a notícia pelo mundo afora.” Eu fui enérgico. Estávamos um pouco tensos. Eu falei: “A igreja guarda segredo demais. Depois, os jornais têm que inventar…” Eu não ia ao Vaticano porque não concordava com o modo como os bispos eram recebidos. Não havia diálogo. Nós escutávamos, fazíamos uma foto, e ficava por isso. O que a gente pede é a comunicação.

Folha – O sr. já conhecia o cardeal Ratzinger?

Casaldáliga – Só por referências. Sabíamos que era um homem duro, controlador. Como dizem alguns, um “cardeal de ferro”.

Folha – Ele levantou a voz, em algum momento?

Casaldáliga – Não. Ele levantava as palavras…

Folha – Na sua ação, o que mais incomodou o cardeal Ratzinger?

Casaldáliga – Foram os compromissos sociais, a ida à Nicarágua e à América Central. Também o fato de inculturar a liturgia. Acharam que a missa dos quilombos transformava a missa num grito de um povo. Eu retruquei que a Igreja já havia feito missas para homenagear reis e príncipes. Muito mais direito tinha todo um povo massacrado. Toda uma cultura marginalizada. Celebramos a missa pela causa indígena. Podemos celebrar o sofrimento e a esperança do povo negro, dos povos indígenas. Eu falei para um cardeal africano, que estava ao lado de Ratzinger, que ele poderia entender a missa dos quilombos.

Folha – Ele concordou com o cardeal Ratzinger ou com o sr.?

Casaldáliga – Ele era juiz naquele tribunal. Não foi uma coisa feroz. Foi tenso, em alguns momentos, mas houve momentos de humor.

Folha – O sr. lembra de algum comentário bem-humorado do cardeal Ratzinger?

Casaldáliga – Ele me tinha perguntado por que eu falei na Nicarágua. Eu disse que era necessário revolucionar cada um de nós, revolucionar a igreja, revolucionar o mundo. Quando terminamos, eu falei: “Vamos rezar o Pai Nosso”. Ele perguntou, com certa ironia: “É para revolucionar a Igreja”? Eu falei: “Também. A igreja toda tem que mudar”.

Folha – Além do “silêncio obsequioso” houve outro constrangimento imposto pela congregação?

Casaldáliga – Quiseram que eu assinasse uma série de proposições, de compromissos. Me chegou esse documento com papel timbrado do Vaticano, mas sem assinatura. Sem que eu dissesse uma palavra, esse documento foi publicado. Eu me neguei, então, a firmar esse documento.

Folha – Qual é a sua esperança?

Casaldáliga – O reino de Deus continua. Passa bispo, passa papa, passa príncipe, passa rei. Nós devemos continuar nosso trabalho com muita esperança, relativizando o que é relativo. E não desanimar por nada.

 

 

Fonte: https://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2020/08/08/dom-pedro-relata-o-abraco-de-karol-wojtyla-e-o-interrogatorio-de-ratzinger/

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