Não são os indígenas que podem acabar com o agronegócio, mas o próprio

Sonia Guajajara

Coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e ex-candidata do PSOL à Vice-Presidência da República (2018)

Minha língua materna é a ze’egete, que significa “a fala boa”. Sou formada em letras, também conheço muito bem o português. “Narrativa”, palavra favorita dos seguidores do presidente Jair Bolsonaro, é definida no dicionário como “texto em prosa cujos personagens figuram situações fictícias, imaginárias”. E ela define a fala má dita na semana passada por Bolsonaro sobre o julgamento da tese do marco temporal no Supremo Tribunal Federal: “Se mudar o entendimento passado, de imediato nós vamos ter que demarcar, por força judicial, uma outra área equivalente à região Sudeste como terra indígena. Acabou o agronegócio”. Como é possível caber tanta ficção em apenas duas frases?

Ruralistas chegaram a pagar anúncios de página inteira em jornais para ajudar a vender a fantasia presidencial; mas, no mundo real, se o STF decidir sepultar de vez o marco temporal não estará modificando nenhum “entendimento passado”. Na verdade, quem fez isso foi a Advocacia-Geral da União (AGU), durante o governo Michel Temer (MDB), quando emitiu o parecer 001/2017.

O marco temporal —que determina que somente os povos indígenas que já estivessem ocupando suas terras na data da promulgação da Constituição, em 1988, poderiam reclamar sua posse— não era previsto por lei. A AGU se valeu do voto do ex-ministro Ayres ​Britto no julgamento sobre a homologação da terra indígena (TI) Raposa Serra do Sol para formar seu entendimento.

Em 2009, a corte havia decidido que a TI deveria ser demarcada “de forma contínua”; logo, posses não indígenas ficariam de fora da área delimitada. Apenas o voto de Britto fazia menção ao marco temporal. O Supremo foi acionado de novo, em 2013, para julgar apelações contra a decisão. E, além de manter o veredicto, determinou que ele não teria efeito vinculante. Aliás, a tese nem sequer foi aplicada no processo Raposa Serra do Sol, já que havia posses não indígenas nos limites de seu território que datavam do início do século 20 e foram anuladas. Isso não é história, é fato histórico.

Bolsonaro prometeu que o Brasil voltaria ao que era há 50 anos, mas a aprovação do marco temporal faria o país recuar ao período colonial. Alvará de 1º de abril de 1680, sancionado pela lei de 6 de julho de 1775, já estabelecia que, em “terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas”. O presidente também não será obrigado a fazer nada “de imediato”: o artigo 67 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 previa um prazo de cinco anos para que todas as TIs estivessem demarcadas. O Estado já está 28 anos atrasado.

Hoje, as terras indígenas ocupam 13,8% do território nacional. Parece muito, mas a proporção é menor que a média mundial, 15%, segundo estudo publicado na revista “Nature Sustainability”. Se comparadas à área ocupada por propriedades rurais, a gente perde de goleada: 41%. São 421 TIs já homologadas, que totalizam 1,066 milhão de km2 e 303 em fase de demarcação, ou 110 mil km2. Nelas vivem mais de 600 mil pessoas. Enquanto isso, 51,2 mil latifúndios, ou 1% das propriedades, ocupam 20% do Brasil. São dados do Diário Oficial da União, do IBGE, da Funai, do Instituto Socioambiental e do projeto MapBiomas.

Ainda para efeito de comparação, a TI Ibirama-La Klãnõ, reclamada pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina e cujo julgamento o STF tornou de repercussão geral, tem 370 km2 e dela dependem 2.057 indígenas; já a Fazenda Nova Piratininga, em Goiás, que pertence a três empresários, ocupa 1.350 km2.

Não há nada que justifique o olho gordo em nossas terras: só na Amazônia há 510 mil km2 de área não destinada, que poderiam ser usados para produção. TIs são fundamentais para conter o desmatamento —apenas 1,6% da perda de vegetação nativa no país se deu em seus limites entre 1985 e 2020—, e elas armazenam 28,2 bilhões de toneladas de CO2 na Amazônia, 33% do total.

Sem as terras indígenas, o planeta vai esquentar e o céu vai parar de chover. Não somos nós que podemos acabar com o agronegócio, mas ele mesmo.

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Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/08/nada-justifica-o-olho-gordo-em-nossas-terras.shtml

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