Como se não bastasse a conciliação sobre direitos inegociáveis, povos indígenas vivenciaram tutela com declaração de juiz que conduziu reunião.
A reunião de conciliação realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) na segunda-feira (5) sobre a Lei 14.701/2023, do marco temporal, foi marcada pela violação aos direitos dos povos indígenas.
Mesmo sendo contrários à reunião de conciliação, já que os direitos dos povos originários são direitos fundamentais e, por isso, não são negociáveis, as lideranças fizeram questão de marcar presença, mas não tiveram as falas respeitadas, como explicou a assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e da Coordenação das Organizações e Articulações Indígenas do Maranhão (Coapima), Kari Guajajara.
“Ninguém ouve o que os povos indígenas estão dizendo. Nós queremos diálogo. Há muito tempo nós ensinamos como fazer diálogo e estar sentados nesta mesa é uma demonstração dessa disposição, mesmo os nossos parentes sendo atacados, mesmo a maioria dos povos já dizendo: ‘Não queremos conciliação’. Nós abrimos o coração, estamos aqui. Nós temos tudo a perder. E é por isso que estamos aqui”, disse Kari.
Veja quais são as ações sobre a lei 14.701 no STF:
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7582, favorável aos direitos indígenas
Autoria: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)
Disponível aqui!
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7583, favorável aos direitos indígenas
Autoria: Partido dos Trabalhadores, Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Verde (PV)
Disponível aqui!
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7586, favorável aos direitos indígenas
Autoria: Partido Democrático Trabalhista (PDT)
Disponível aqui!
Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87, contrária aos direitos indígenas
Autores: partidos Liberal, Progressistas e Republicanos
Disponível aqui!
Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86, contrária aos direitos indígenas
Autoria: Partido Progressista
Disponível aqui!
Kleber Karipuna, da coordenação da Coiab e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), também denunciou que as vozes das lideranças não foram ouvidas em vários momentos. Uma solicitação feita pela APIB de mais tempo para apresentar um posicionamento sobre a continuidade das negociações havia sido totalmente ignorada e só observada após a fala de uma não indígena.
“Mesmo a gente fazendo esse pedido, só foi acatado após habilitação de manifestação do Ministério dos Povos Indígenas. Também nos sentimos muito violados, inclusive, quanto à tutela do Estado. O juiz que estava conduzindo a conciliação [Diego Viegas Veras] disse que a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] estaria apta para colher a posição do movimento indígena”, afirmou Kleber Karipuna, em coletiva de imprensa após a reunião.
O líder Karipuna lembrou que o comentário do juiz Diego Viegas Veras remete ao processo de tutela, que foi superado no Brasil, após a Constituição Federal de 1988. “Isso revela como o preconceito e o racismo institucional estão enraizados nas esferas do poder”.
Ainda que dirigidas por mulheres indígenas, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas têm como dever a defesa dos direitos dessas populações, o que inclui respeitar a autodeterminação de todos os povos. Nenhum dos órgãos substitui as organizações e mobilizações indígenas.
Uma delegação com 42 lideranças de Mato Grosso foi até Brasília para participar da reunião e se manifestar contra a tese do marco temporal e os outros retrocessos da lei 14.701. O advogado e diretor executivo da Associação Terra Indígena Xingu (ATIX), Ewésh Yawalapiti Waurá, que estava no grupo, contou que, inicialmente, eles foram impedidos de entrar no local.
“No primeiro momento, na entrada, fomos barrados pela segurança. Aí você já vê: uma situação de discriminação. Depois que entramos, teve esse momento que o juiz falou que a Funai estava presente e ia representar os povos indígenas, sendo que a Funai não tutela mais os povos indígenas. A APIB estava lá e foi a APIB que entrou com a ação direta questionando a lei. O STF inventou a câmara de conciliação, na verdade, para tentar negociar os direitos dos povos indígenas”, afirmou Ewésh.
Reunião de conciliação
A comissão especial de conciliação foi proposta pelo ministro Gilmar Mendes, relator das ações com motivações pró e contra os direitos indígenas, sendo que quatro questionam a validade da lei e uma pede ao STF para declarar a sua constitucionalidade. A audiência desta segunda-feira foi a primeira de uma sequência de encontros que seguem até 18 de dezembro deste ano com previsão da próxima reunião para 28 de agosto e, para setembro, audiências nos dias 9 e 23, a depender da manifestação da APIB, que solicitou prazo de 48 horas para discutir os dias dos encontros com lideranças indígenas.
Na decisão que criou a comissão, o ministro Gilmar Mendes argumentou que os debates sobre marco temporal deverão focar na resolução dos problemas “devendo os participantes aterem-se a esse chamamento e evitarem exposições alongadas e debates infrutíferos sem que sejam apresentadas soluções factíveis de serem implementadas”.
Para os povos indígenas, porém, não há o que negociar sem a suspensão da lei 14.701, que é inconstitucional e já vem causando insegurança jurídica e aumento de violência contra as comunidades.
Comentários