Brasília (DF) – O cacique Sokrowe Karajá, de 43 anos, encerrava mais um expediente de trabalho como vigilante noturno na Escola Estadual Indígena Maluá quando ouviu o barulho vindo do helicóptero. A aeronave sobrevoava o campo de futebol da aldeia Santa Isabel do Morro, no Parque Indígena Araguaia, na Ilha do Bananal, localizada no estado do Tocantins e separada do Mato Grosso pelo rio Araguaia. Sokrowe tratou logo de sacar o celular e filmar a cena para mostrar às crianças depois. Elas adoram helicópteros, disse o cacique, mas eram 6 horas da manhã e muitas ainda dormiam.
Sokrowe pensava se tratar de uma aeronave da PrevFogo, a brigada de incêndio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas logo viu um atirador que mirava sua arma em direção à aldeia e soube que o helicóptero fazia parte de uma operação da Polícia Civil do Mato Grosso, dentro da Terra Indígena para cumprir o mandado de prisão contra Lourenço Rosemar de Mello, do povo Karajá. Mas, em vez de ser preso, Lourenço foi alvejado por um tiro disparado por um agente policial na frente da família, das mulheres e crianças e morreu. “A mãe dele viu o filho caindo”, disse o cacique.
“Fui até o cercado da escola perguntar o que estava acontecendo e falaram que a polícia tinha chegado para pegar o Lourencinho. Peguei a moto e fui para lá, mas no caminho ouvi o barulho do tiro de calibre 60 e todo mundo chorando. Quando cheguei no local, ele já estava morto”, disse Sokrowe.
Cacique Sokrowé Karajá (Foto: Labé Iny)
A operação, que aconteceu há menos de um mês, em 16 de setembro, contou também com o apoio da Polícia Civil do Tocantins, num total de cerca de dez agentes policiais. Além do helicóptero, que sobrevoou a aldeia, chegaram cinco camionetes. Segundo o cacique, foi tudo muito rápido e entre a chegada da polícia e o tiro em Lourenço, foram cerca de 30 minutos. Segundo ele, Lourenço foi alvejado pelas costas. O coordenador técnico local da Fundação Nacional do Índio (Funai) em São Félix do Araguaia (MT), Vicente de Paula Rodrigues de Lima, acompanhou a operação. A Funai não retornou aos questionamentos da reportagem.
‘Como se fosse um cachorro’
Frame de vídeo que circulou nas redes sociais
Vídeos enviados para a Amazônia Real mostram Lourenço, já sem vida, sendo colocado de qualquer jeito na carroceria de uma camionete. “Colocaram o corpo em cima da camionete como se fosse um cachorro”, descreveu o cacique. Lourenço chegou a ser levado para um hospital de São Félix do Araguaia, o município mais próximo, mas não resistiu. Por volta das 23 horas, um tio voltou com o corpo de Lourenço para a comunidade, onde foi enterrado.
Diferente dos relatos da polícia que indicam que Lourenço teria reagido, o cacique Sokrowe afirma que ele não estava tentando fugir e já tinha decidido se entregar. “A mulher dele me contou que ele tinha falado que ia se entregar, que estava cansado, foi para o meio da família para fazer uma despedida.” Lourenço deixou nove filhos, com idades entre 1 e 15 anos.
Sokrowe, que há 11 anos é o cacique da aldeia Santa Isabel do Morro, uma das maiores do Parque Indígena Araguaia, com 1.600 habitantes, disse que nunca a polícia entrou na comunidade sem avisá-lo ou consultá-lo, fator que poderia ter mudado o desfecho da história, pois o local teria sido preparado para a chegada dos policiais e ele poderia ter ajudado os agentes com informações.
“Nunca a polícia tinha entrado sem avisar, eu vi isso pela primeira vez. Tinham que ter avisado da operação, avisado que a polícia ia entrar na aldeia. Foi muito errado isso”, protestou. Ele disse que circulou a informação de que, em 2019, algumas lideranças teriam liberado para as autoridades a entrada no território para proteção policial. “Mas eu não sei qual cacique autorizou e a Funai até agora não se manifestou.”
Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi ), a ausência de consulta representa um sério desrespeito à autonomia dos povos indígenas. Em nota divulgada logo após a morte de Lourenço, o Cimi informou que “a ausência da Polícia Federal, responsável por garantir a segurança dos indígenas e por atuar em situações de conflito envolvendo estes povos, também é um elemento que se soma à trágica ocorrência, que impactou duramente todos os moradores da aldeia”.
MPF apurará ação policial
O Ministério Público Federal do Tocantins abriu procedimento para apurar se houve excessos e se a ação policial era realmente necessária. “A polícia nunca faz operação na aldeia e quando faz é uma coisa desastrosa. As pessoas ficaram muito assustadas porque parecia que era uma operação para acabar com tudo e não para prender uma pessoa só”, afirmou Álvaro Manzano, procurador da República no Tocantins. Ele afirmou que é preciso também haver uma estratégia para atuar com os indígenas.
Em nota enviada pela Secretaria da Segurança Pública do Mato Grosso (SSP-MT) à reportagem, a informação é que Lourenço reagiu ao pedido de prisão usando a mulher como escudo. “Ao chegarem na casa dele, avisaram que era a polícia e ele saiu do imóvel com uma arma de fogo, apontada para a cabeça da sua mulher usando-a como refém. Os policiais tentaram negociar com ele para que soltasse a mulher e se entregasse, porém, ele não obedeceu aos comandos e foram necessários disparos para salvaguardar a vida da vítima. Tão logo foi atingido com os disparos, o alvo foi socorrido até o hospital de São Félix do Araguaia, mas não resistiu e foi a óbito”, resume a nota oficial.
Ainda de acordo com a SSP-MT, Lourenço respondia a inquéritos e ações penais por diversos crimes cometidos na região de São Félix do Araguaia, como receptação de produtos furtados, comércio de arma de fogo, tortura e cárcere privado contra a própria família e suporte para fuga de criminosos.
Segundo o cacique Sokrowe, as crianças, que antes gostavam tanto de helicópteros, agora, ao ouvirem o barulho de um, correm com medo. “Não quero mais que entre polícia na aldeia, todo mundo está assustado, as crianças estão assustadas, as crianças falam que policial está vindo para matar alguém quando ouvem um helicóptero. Não queremos mais esse tipo de situação aqui e queremos Justiça.”
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