O fato de que as audiências públicas agora estão sendo realizadas é um sinal revelador de quão deficiente é o sistema de tomada de decisões do Brasil. Sabe-se há décadas que a rodovia BR-319 é economicamente inviável, mesmo em termos de custos financeiros imediatos (vide a tese de doutorado Karenina Teixera, disponível aqui [1]), quanto mais com uma contabilidade adequada dos enormes custos do empreendimento. custos ambientais (análise de CSF, disponível veja aqui [2]). Carece até o estudo e viabilidade econômica (EVITEA), que é feito para todos os grandes projetos inclusive reconstruções, como a da BR-163.
Também ficou aparente há algum tempo que os interesses nacionais básicos do Brasil seriam ameaçados pela perda de serviços ambientais da destruição ambiental que seria estimulada pela rodovia e suas estradas vicinais associadas [3]. Em 2021 o sudeste do Brasil sofre uma grande seca, e a “crise hidrológica” e a consequente “crise energética” devem ser ainda piores em 2022. Em 2014 a cidade de São Paulo esteve perto de ficar sem água, até para beber. Essas secas não se devem principalmente à perda da floresta amazônica, mas sim às mudanças climáticas globais associadas ao aquecimento global [4, 5]. No entanto, se o efeito da perda do transporte de água da Amazônia para São Paulo pelos ventos conhecidos como “rios voadores” fosse adicionado a este nível atual de variabilidade climática, o resultado seria catastrófico. A BR-319 e as estradas vicinais associadas ameaçam o bloco de floresta que é justamente a área mais crítica para a manutenção do fornecimento de vapor d’água para São Paulo: a vasta área entre a rodovia BR-319 e a fronteira do Brasil com o Peru [3, 6].
Os impactos da BR-319 vão muito além do que é considerado no EIA, que se concentra na faixa ao longo do próprio traçado da rodovia. No entanto, o EIA contém trechos ocasionais que tocam neste impacto mais amplo, e os funcionários do IBAMA, portanto, não podem alegar que não foram avisados. Os mais importantes são a planejada rodovia AM-366, que ligaria a BR-319 a Tapauá, Tefé e Juruá, e a AM-248, que se ramificaria da AM-366 para ligar Coari à BR-319. Os planos para essas estradas só existem por causa da BR-319, e seu impacto é parte do impacto do projeto da BR-319. O EIA contém a afirmação de que: “existe uma previsão no Plano Diretor de Tapauá na implantação da AM-366 pós restauração da BR-319/AM.” ([7] EIA, Parte 5, p. 3565 & 2362). Funcionários do Ibama não podem alegar ignorância disso.
O EIA também menciona que, apenas 35 km do Rio Purus no trecho ao oeste de Tapauá, é o local do primeiro bloco para extração de petróleo e gás já vendido a Rosneft, a gigante empresa petrolífera russa que o Greenpeace-Rússia acusa de causar mais de 10 mil derramamentos de petróleo no mundo [8]. Rosneft seria um dos grandes beneficiados da BR-319, e certamente teria influência em acelerar a construção da AM-366, que passaria por alguns dos blocos que a empresa comprou [9-11].
O EIA menciona que “A questão da exploração dos blocos da bacia do Solimões …. ganha maior relevância devido justamente à possível interligação entre a BR-319 e os municípios de Tefé e Coari por meio da rodovia AM-366, de onde poderiam “sair” os ramais rodoviários para os pontos das instalações petrolíferas” ([12], EIA, Parte Apurinã, p. 106). Além da construção estradas laterais pelo governo por pressão das empresas petrolíferas, o surgimento de “ramais” endógenos ilegais também é provável. Isto já está acontecendo no caso da própria BR-319 (e.g., [3, 13]), e o EIA até menciona um eles explicitamente ([7], EIA, Parte 5, p. 3565). Praticamente todo o percurso da AM-366 ao oeste do rio Purus é dentro de uma imensa área de terras públicas sem destinação (“terras devolutas”), que é o tipo mais atraente a grileiros, sem-terras, madeireiros, e outros atores. Depois de construído, o que acontece é, em grande parte, fora do controle do governo. A imagem passada pelo EIA de que governança controlaria esses processos é simplesmente ficção (veja: [14-17]).
Entre outros impactos, os proponentes da BR-319 têm responsabilidade pelos impactos catastróficos da AM-366. O EIA menciona que “[A] cadeia de eventos que de certa forma coloca o empreendedor em algum grau de responsabilização com a eventual ligação terrestre BR-319-cidade de Tapauá” ([12], EIA, Parte Apurinã, p. 120). O EIA chega a apontar um documento (IT nº 24/2017 / COTRAN / CGLIC / DPDS / FUNAI) mostrando que o DNIT teve uma reunião formal com a FUNAI em 21 de junho de 2016, iniciando um esforço para obter a permissão da FUNAI para construir a AM-366 através de duas terras indígenas ([12], EIA, Parte Apurinã, p. 120). O “empreendedor” (DNIT) não é o único nesta responsabilidade: os funcionários do IBAMA que aprovem o projeto da BR-319 também serão responsáveis, e não apenas pelo trecho entre a BR-319 e Tapauá, que passa por um parque nacional além de terras indígenas, mas para toda a sequência de eventos decorrente da abertura da região “Trans-Purus” pelo AM-366.
O projeto BR-319 avançou ao ponto de realizar audiências públicas, apesar de múltiplas camadas de ilegalidade. A mais reveladora é a falta de consulta a qualquer um dos povos indígenas impactados pela rodovia, conforme exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho (OIT) [18] e pela lei brasileira nº 10.088, de 05 de novembro de 2019 [19]; anteriormente No 5.051, de 19 de abril de 2004 [20] ver [21, 22]). O EIA chega a mencionar isso, incluindo o fato de que essa consulta deve ser feita antes de qualquer decisão sobre a existência do projeto ([12], Parte Apurinã, p. 26). A realização de audiências públicas antes de os indígenas serem consultados viola esta convenção internacional e a legislação brasileira, conforme detalhado na “recomendação” formal feita pelo MPF ao IBAMA de cessar todas as atividades de licenciamento do trecho do meio da BR-319, incluindo audiências públicas, até que a consulta seja concluída [23]. A recomendação do MPF também apontou o fato de estarmos no meio de uma pandemia de Covid que é especialmente perigosa para qualquer participante indígena nas audiências (veja explicação na Nota de Posicionamento de 16 de setembro de 2021 do Observatório BR-319 [24]).
O IBAMA e DNIT seguirem com a convocação da primeira audiência em Manaus na noite de 27 de setembro, em desacordo com a recomendação do MPF, mas minutos antes do início da audiência uma decisão liminar da juíza Mara Elisa Andrade acatou parcialmente a recomendação do MPF, suspendendo as audiências até o fim da pandemia [25]. Enquanto os participantes da audiência esperavam (durante aproximadamente uma hora e meia), essa decisão foi derrubada por uma “suspensão de segurança” obtida, segundo bastidores, por meio de um telefonema do Ministro dos Transportes para o desembargador em Brasília que liberou a audiência (Ítalo Fioravanti Sabo Mendes) [26]. “Suspensões de segurança” são uma relíquia da ditadura militar (Lei 4.348, de 26 de junho de 1964), ainda em vigor (Lei 8.437 de 30 de junho de 1992 e Lei 12.016 de 07 de agosto de 2009), que permitam derrubar qualquer decisão jurídica se causaria “grave dano” à “ordem, à saúde, à segurança e à economia pública” (veja 27-29). Neste caso a rodovia é difícil defender com base de economia, e optou por argumentar a necessidade para transporte de oxigênio e outros insumos médicos – um argumento também falacioso [30]. A audiência, então, foi realizada.
Prosseguir com a rodovia BR-319 e estradas associadas teria consequências desastrosas para o Brasil, efetivamente abrindo o que resta da floresta amazônica do país para a migração de atores e processos do arco do desmatamento, inclusive para Roraima [31, 32] e outras áreas já conectado a Manaus por rodovia e às vastas novas áreas a serem abertas por estradas planejadas ligadas à BR-319 [33-37]. Evitar essas consequências exigiria, antes de empreender o projeto de reconstrução da BR-319, que fosse alcançado um nível de governança em toda essa área que só pode ser esperado em um horizonte de tempo muito além do mandato de qualquer político. É evidente a hipocrisia dos políticos que promovem o atual projeto de reconstrução da BR-319 para ganhar votos em Manaus e, ao mesmo tempo, afirmam ser preocupados com a sustentabilidade e o clima global [30, 38, 39]. A responsabilidade do IBAMA é de salvaguardar o direito constitucional a um “meio ambiente ecologicamente equilibrado” ([40], Artigo 225), não de atender aos interesses dos políticos.
A imagem que abre este artigo é um print do Canal de YouTube do Dnit da transmissão da Audiência Pública realizada em 27 de setembro no Centro de Convenções Vasco Vasques.
Notas
[1] Teixeira, K.M. (2007) Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Conteineres nas Conexões com a Região Amazônica . Tese de doutorado em engenharia de transportes. 235 pp. Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos, São Carlos, São Paulo.
[2] Fleck, L (2009) Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Série Técnica, no. 17 . Conservation Strategy Fund (CSF), Lagoa Santa, Minas Gerais. 53 p.
[3] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020. Trans-Purus, a última floresta intacta . Amazônia Real.
[4] Fearnside, P.M. 2021. Lessons from Brazil’s São Paulo droughts (commentary) . Mongabay , 30 July 2021.
[5] Fearnside, P.M. 2021. As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil: 2 – A seca no Sudeste . Amazônia Real , 20 de julho de 2021.
[6] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo [Amazônia Real Série completa].
[7] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. BR-319/AM: EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do km 250,00 ao km 655,70. DNIT, Brasília, DF. 2.795 p.
[8] Wikipedia . 2020 . Rosneft.
[9] Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões” . Amazônia Real , 12 de março de 2020.
[10] Fearnside, P.M. 2020. Petróleo e gás no Solimões: Resposta a Hermani Vieira da EPE . Amazônia Real , 04 de abril de 2020.
[11] Fearnside, P.M. 2020. Resposta à tréplica da EPE sobre petróleo e gás . Amazônia Real , 15 de abril de 2020.
[12] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. Estudo do Componente Indígena CI Preliminar da Etnia 3 – Apurinã – Rev C . DNIT, Brasília, DF. 173 p.
[13] Fearnside, P.M., L. Ferrante & M.B.T. de Andrade. 2020. Ramal ilegal a partir da rodovia BR-319 invade Reserva Extrativista e ameaça Terra Indígena . Amazônia Real , 09 de março de 2020.
[14] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M Fearnside. 2021, Brazil’s Highway BR-319 demonstrates a crucial lack of environmental Amazonia . Environmental Conservation 48(3): 161-164.
[15] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia . Amazônia Real , 02 de março de 2021.
[16] Ferrante, L.; Andrade, M.B.T.; Fearnside, P.M. 2021.Grilagem na rodovia BR-319 . Amazônia Real.
[17] Ferrante, L.; Andrade, M.B.T.; Fearnside, P.M. 2021. Land grabbing on Brazil’s Highway BR-319 as a spearhead for Amazonian deforestation . Land Use Policy 108: art. 105559.
[18] ILO (International Labour Organization), 1989. C169 – Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169). ILO, Genebra, Suíça.
[19] PR (Presidência da República). 2019. Decreto Nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. PR, Brasília, DF.
[20] PR (Presidência da República),2004. Decreto No 5.051, de 19 de abril de 2004 . PR, Brasília, DF.
[21] Ferrante, L.; M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319 . Land Use Policy 94: art. 104548.
[22] Ferrante, L. M.P. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. BR-319 ameaça povos indígenas. Série Amazônia Real.
[23] MPF (Ministério Público Federal) 2021.PR-AM-00040501/2021. Inquérito Civil n° 1.13.000.001678/2009-42. Recomendação Legal N°11/2021, 5° Ofício/PR/AM/MPF. Procuradoria da República no Estado do Amazonas 5° 0ficio, Manaus. 03 de setembro de 2021.56 p.
[24] Observatório BR-319. 2021. Nota de Posicionamento do Observatório BR-319 a Respeito das Audiências Públicas Relativas ao Licenciamento do Trecho do Meio da Rodovia BR-319 . Observatório BR-319, Manaus, 16 de setembro de 2021. 5 p.
[25] 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas 2021. Autos: 1022245-88.2021.4.01.3200 Classe: Tutela Cautelar Antecedente (12134).
[26] Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 2021. Processo: 1035291-44.2021.4.01.0000 Processo Referência: 1022245-88.2021.4.01.3200. Classe: Suspensão de Segurança Cível (11556). Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, DF.
[27] Fearnside, P.M. 2015. Amazon dams and waterways: Brazil’s Tapajós Basin plans. Ambio 44: 426-439.
[28] Fearnside, P.M. 2015. Hidrelétricas e hidrovías na Amazônia: Os planos do governo brasileiro para a bacia do Tapajós. pp. 85-98 . In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras . Vol. 2. Editora do INPA, Manaus. 297 pp.
[29] Fearnside, P.M. 2019. São Manoel: Barragem amazônica derrota IBAMA.p. 125-131 . In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras . Vol. 3. Editora do INPA, Manaus. 148 p.
[30] Fearnside, P.M., M.B.T. de Andrade & L. Ferrante. 2021. BR-319: Prefeito de Manaus aproveita crise de oxigênio para promover agenda anti-ambiental . Amazônia Real , 18 de janeiro de 2021.
[31] Barni, P. E., Fearnside, P. M., Graça, P. M. L. A., 2015. Simulating deforestation and carbon loss in Amazonia: Impacts in Brazil’s Roraima state from reconstructing Highway BR-319 (Manaus-Porto Velho). Environmental Management 55(2): 259-278.
[32] Barni, P. E., Fearnside, P. M., Graça, P. M. L. A., 2018. Simulando desmatamento e perda de carbono na Amazônia: Impactos no Estado de Roraima devido à reconstrução da BR-319 (Manaus-Porto Velho). In: Oliveira, S.K.S. & Falcão, M.T. (Eds.). Roraima: Biodiversidade e Diversidades. Editora da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Boa Vista, Roraima. p. 154-173.
[33] Fearnside, P.M., 2020. BR-319 – O começo do fim para a floresta amazônica brasileira. Amazônia Real , 06 de outubro de 2020. https://amazoniareal.com.br/br-319-o-comeco-do-fim-para-a-floresta-amazonica-brasileira-06-10-2020/
[34] Fearnside, P.M. 2018. BR-319 e a destruição da floresta amazônica. Amazônia Real 19 de outubro de 2018.
[35] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.
[36] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2006. BR-319: Brazil’s Manaus-Porto Velho Highway and the potential impact of linking the arc of deforestation to central Amazonia . Environmental Management 38(5): 705-716.
[37] dos Santos Júnior, M.A.; A.M. Yanai, F.O. Sousa Junior, I. S. de Freitas, H.P. Pinheiro, A.C.R. de Oliveira, F.L. da Silva, P.M.L.A. Graça & P.M. Fearnside. (2018) BR-319 como propulsora de desmatamento: Simulando o impacto da rodovia Manaus-Porto Velho . Instituto do Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (IDESAM), Manaus, Amazonas. 54 p.
[38] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. Brazil’s Highway BR-319: The road to the collapse of the Amazon and the violation of indigenous rights . Die Erde 152(1): 65-70. https://doi.org/10.12854/erde-2021-552
[39] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos indígenas . Amazônia Real , 23 de fevereiro de 2021.
[40] Brasil. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. [atualizada] Senado Federal , Brasília, DF.
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