Cuiabá (MT) – “Eles já chegaram batendo e xingando, chamando de vagabundo, que só queremos roubar a terra deles e que a gente tinha que morrer”, disse o indígena Guarani-Kaiowá, Vitorino Franco, 37 anos, à agência Amazônia Real sobre o momento de terror que viveu em 16 de março. Ele conta que recorda da bicuda na barriga, dos tiros disparados tão perto de seu ouvido e das pancadas com a arma em sua cabeça. Foram tantos golpes que ele desmaiou e só foi acordar no dia seguinte, às 3 horas, jogado na vala de uma rodovia. Vitorino e dois colegas indígenas, Vander Genilton Martín e um adolescente de 17 anos, foram atacados por três jagunços, homens não indígenas fortemente armados, em uma caminhonete Toyota Hilux de cor prata, às margens da rodovia MS-386, no município de Aral Moreira, ao sudoeste de Mato Grosso do Sul.
Ao acordar de madrugada, sozinho na rodovia, Vitorino notou sua cabeça ensanguentada e o corpo todo dolorido e com vários hematomas. Mas o que mais o preocupava naquele momento é que ele não conseguia escutar nada. “Na hora fiquei surdo e ainda não consigo ouvir as coisas direito, escuto bem baixinho. O Vander está com problema parecido”, relata o indígena à reportagem.
Nessa região localizada na fronteira com o Paraguai, mas ainda dentro de um Brasil cujo presidente estimula que a população ande armada, a disputa de terras implica em ameaças constantes, recados nada velados e assassinatos impunes. Os homens armados seriam, segundo os indígenas espancados, funcionários da Fazenda Querência, cujo dono, Idelfino Maganha, é proprietário também da fazenda Água Branca. Esta e as propriedades Nova Aurora e Três Poderes fazem parte da área onde os indígenas estão acampados e reivindicam como o território Tekoha Gauviry.
Vitorino Franco disse que saiu do acampamento no fim da tarde do dia 16 de março, acompanhado de Vander Genilton Martín e do adolescente. Eles iriam comprar comida num local conhecido como “Tagi”, um posto de gasolina desativado, mas com um mercadinho e restaurante. É um tradicional ponto de parada e de encontro de caminhoneiros, fazendeiros e indígenas. O local fica a cerca de dois quilômetros da comunidade.
Os Guarani-Kaiowá chamam o Tekoha Guaiviry na língua indígena de “lugar onde se é”. Para eles, trata-se de uma ocupação tradicional, onde há um cemitério de antepassados. A Fundação Nacional do Índio (Funai) iniciou o estudo de demarcação do território em 2008, mas o processo está parado no órgão desde 2012. No ano passado, dois ataques foram registrados contra a etnia. Leia aqui.
Indígenas Guarani-Kaiowá que foram espancados (Fotos: ©Aty Guasu)
Por volta das 20 horas, os três voltavam das compras e foram surpreendidos pelos jagunços na caminhonete. O adolescente conseguiu fugir, mesmo sendo alvo de disparos dos homens armados, segundo lembra Vitorino.Em meio às ofensas, os capangas perguntaram se Vitorino “era irmão do capitão, porque se fosse iria morrer”. Capitão no caso é o líder dos Guarani-Kaiowá, Genito Gomes, filho do cacique Nísio Gomes, que em 2011 foi morto por pistoleiros na mesma região do espancamento.
A mesma cena voltou a se repetir em meio à pandemia do novo coronavírus. Ao chegar ferido à comunidade, depois de uma hora de caminhada, Vitorino encontrou Vander também muito machucado e o adolescente, que havia escapado, em estado de choque. “Ele ficou tão traumatizado, que quando chegou na comunidade não conseguiu relatar no dia o que havia acontecido. Só foi contar pra gente o que aconteceu um dia depois”, disse Genito Gomes, o líder dos Guarani-Kaiowá.
As vítimas do espancamento ainda se recuperam das agressões. Vitorino passa boa parte do dia em repouso e quando resolve caminhar ainda sente dores pelo corpo. A audição começa a voltar ao normal. Ele e Vander são tratados à base de remédios caseiros. Pai de dois filhos, um de 9 e o outro de 13 anos, Vitorino disse temer pelos seus filhos e que o acampamento, de um modo geral, está em estado de alerta, já que veículos da Fazenda Querência passam constantemente em frente a Tekoha Guaiviry.
Para um representante da Associação Aty Guasu – a Assembleia Geral dos Guarani e Kaiowá, que pediu para não ser identificado -, não há dúvidas de que o crime esteja relacionado com a disputa de terra envolvendo os indígenas e os fazendeiros da região. Ele conta que a Polícia Civil investigava o caso como um crime comum, alegando que não há elementos para relacioná-lo a um conflito agrário.
A Associação Aty Guasu não concordou e acionou o Ministério Público Federal (MPF), que passou a investigar o caso. “O MPF possui um perito antropológico que está fazendo um trabalho aprofundado sobre o caso. Ele já foi até a aldeia, apurar as informações, colher o depoimento de vários indígenas, fez uma perícia lá”, explicou o representante da associação dos Guarani-Kaiowá.
“Para mim, está muito claro que a agressão tem a ver com a disputa de terra, com um plano dos fazendeiros que mandaram seus homens para intimidar os indígenas”, disse o membro da Associação Aty Guasu.
A Amazônia Real procurou o MPF para saber os detalhes da perícia e qual linha de investigação que o órgão trabalha, mas não houve respostas até a publicação desta reportagem. Já a Polícia Civil de Aral Moreira informou que o delegado Eduardo Ferreira de Oliveira segue investigando o caso. Testemunhas já foram ouvidas, mas ainda não houve um desfecho.
Em declaração à Agência Pública , Marilene Lolli Ghetti Maganha, mulher do dono da Fazenda Querência – também proprietária do imóvel – disse que só ficou sabendo do episódio “através da mídia”. Ela negou “qualquer tipo de envolvimento” do marido na agressão aos indígenas.
A Funai também foi procurada pela reportagem, a respeito do processo de demarcação do Tekoha Guaiviry, mas o órgão indigenista também não retornou o e-mail e as ligações para comentar o assunto.
Retomada do território e morte de cacique
Tekoha Guaiviry, terra ancestral, onde vivia o líder Nísio Gomes
(Foto: © MPF / Survival)
Os Guarani-Kaiowá ocuparam a área em 1° de novembro de 2011, depois de ficarem 13 anos acampados às margens da rodovia MS-386. Eles contam que foram expulsos do local no início do século 20 por colonizadores para plantação de erva-mate. De lá, foram transferidos para Terra Indígena Amambai, criada pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
A partir da [re]ocupação, o conflito agrário se estabeleceu entre os indígenas e os proprietários rurais. Nos últimos dez anos, houve uma série de investidas por parte dos fazendeiros para retirarem os Guarani-Kaiowá do local. Em 18 de novembro de 2011, o grande cacique da comunidade, Nísio Gomes, de 55 anos, foi assassinado. O caso teve cobertura da imprensa internacional, com publicações no jornal The New York Times e TV Al Jazeera.
De acordo com o relatório “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil” do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), publicado em 2011, pistoleiros contratados por um grupo de fazendeiros da região invadiram o acampamento para expulsar os indígenas. Mas Nísio e outros indígenas não recuaram e foram para cima dos pistoleiros com bordunas e machadinhas. Os pistoleiros começaram a atirar e atingiram Nísio no pescoço e no braço. Antes de morrer, o cacique ainda acertou um golpe de machadinha na perna de um dos criminosos.
No relatório, Valmir Gomes, um dos filhos de Nísio e irmão de Genito, atual liderança, conta que presenciou os pistoleiros jogando o corpo do pai na carroceria de uma caminhonete e fugindo do local. O corpo do cacique nunca foi encontrado e a comunidade não pode enterrar de forma digna seu grande líder no tekoha – um ritual sagrado para a cosmologia dos Guarani Kaiowá.
Em 2012, o Ministério Público Federal apontou que o grupo de fazendeiros envolvidos no assassinato era formado por Idelfino Maganha – citado no começo da reportagem-, Cláudio Adelino Gali, Aparecido Sanches, Samuel Peloi, Levi Palma, Dieter Michael Seyboth e Osvin Mittanck.
Conforme o MPF, eles são acusados de planejar a retomada da área por meio da contratação dos pistoleiros que acabaram assassinando o cacique. Idelfino Maganha chegou a ser preso por isso, mas hoje responde ao processo em liberdade.
Ainda de acordo com às investigações, os pistoleiros foram contratados por meio da empresa Gaspem Segurança, de propriedade de Aurelino Arce, também acusado pelo MPF de envolvimento no assassinato. O caso segue sem desfecho, tramitando na Vara Federal de Ponta Porã.
Nísio Gomes (no centro) era um xamã e líder Guarani-Kaiowá
(Foto: © Survival International)
Leia aqui sobre a violência contra os Guarani-Kaiowá
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