Elaíze Farias e Gabriel Ferreira

Manaus (AM) – O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, autorizou o Instituto Nacional de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a liberar a licença ambiental das obras do Linhão do Tucuruí dentro da Terra Indigena Waimiri Atroari, com base na emenda jabuti do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR). Essa emenda foi incorporada à Lei 14.182, de 12 de julho de 2021, que trata da privatização da Eletrobras. Em ofício enviado ao presidente do Ibama, Eduardo Bim, Xavier sustenta sua autorização no Artigo 1º, inciso 10º, que diz o seguinte: “Para os fins de que trata o § 9º deste artigo, uma vez concluído o Plano Básico Ambiental-Componente Indígena (PBA-CI), traduzido na língua originária e apresentado aos indígenas, fica a União autorizada a iniciar as obras do Linhão de Tucuruí”.

Ato contínuo, a licença ambiental foi liberada no dia 28 de setembro. Era o que faltava para que o Ministério de Minas e Energia considerasse iniciada a fase de obras do Linhão. Mas os Waimiri Atroari denunciam que esse licenciamento foi concedido sem que eles tivessem assegurado do governo federal as demandas de compensação e mitigação pela obra apresentadas em um documento no dia 11 de agosto às autoridades.

O Linhão do Tucuruí, que cortará a TI Waimiri Atroari, localizada na divisa do Amazonas com Roraima, vai ligar o estado roraimense ao Sistema Interligado Nacional (SIN). A previsão é que entre em operação em 2024.

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenaçao das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Marcelo Xavier age contra os interesses dos povos indígenas. Nesta terça-feira (05), a Apib entrou com uma ação civil pública pedindo a saída de Xavier da presidência da Funai.

Em maio passado, os Waimiri Atroari excluíram o presidente da Funai das negociações do Linhão do Tucuruí. Na ocasião, Marcelo Xavier abriu um inquérito policial contra lideranças indígenas da etnia, servidores da Funai, advogados da Associação das Comunidades Waimiri Atroari (ACWA) e colaboradores do Programa Waimiri-Atroari. Um dos alvos do inquérito foi Mário Parwe, principal liderança dos Waimiri Atroari.

“Desde que veio a público o pedido de instauração do inquérito, a comunidade Waimiri Atroari excluiu a Funai de qualquer diálogo envolvendo a Linha de Transmissão enquanto a atual gestão do órgão esteja com Marcelo Xavier à frente”, disse à Amazônia Real o advogado da ACWA, Harilson Araújo. Conforme o advogado, o  inquérito está com a Justiça Federal para apreciar a promoção de arquivamento feita pelo MPF.

A autorização do Linhão por parte de Marcelo Xavier foi considerada pelos indígenas uma “traição”, segundo o advogado. “A fala descabida do presidente da Funai deixou a comunidade mais uma vez bastante decepcionada. Se sentiram traídos. Mas não foi uma novidade a conduta do referido senhor diante de fatos passados praticados por ele contra os interesses dos Waimiri Atroari”, ressaltou Araújo. Segundo o advogado, os indígenas vão entrar com uma ação judicial.

“A ACWA já solicitou providências ao MPF e está colaborando para a confecção de uma medida judicial visando atacar a expedição da licença de instalação”, disse o advogado. O MPF/AM foi procurado para falar sobre a medida, mas não deu retorno até a publicação desta reportagem.

Em carta divulgada no dia 29 de setembro, a ACWA chama de leviana a licença para instalação do empreendimento, e afirma que “a Funai não menciona sobre ter ou não havido a aceitação por parte do governo federal e nem do empreendedor TNE da proposta de compensação apresentada pela Comunidade Waimiri Atroari”.

Indenização milionária

Procurador Edson Damas, do Grupo de Atuação Especial de Minorias e Direitos Humanos (Gaemi-DH), e o procurador da República Alisson Marugal com as lieranças Waimiri (Foto: Ascom MPRR)

Em reunião ocorrida em agosto, os indígenas apresentaram demandas de compensação e mitigação pela construção do Linhão dentro do território. Diagnóstico dos Waimiri Atroari, autodenominados Kinja, apontam 37 impactos ambientais, sendo 27 considerados irreversíveis.

A nota divulgada na semana passada pela ACWA, após a liberação da licença, alerta que “há irregularidades na autorização da obra do Linhão sem garantias das medidas de mitigação e compensação”. Os indígenas dizem também que a Funai não deu parecer prévio de manifestação da compensação aos Waimiri Atroari “fugindo do seu papel institucional de defesa dos interesses dos povos indígenas”.

A proposta de mitigação dos indígenas também inclui indenização, mas nem eles e nem seus representantes falam em valores. “Valores existem e estão na proposta entregue ao governo federal, ao empreendedor e também é de conhecimento da Funai. Pergunte a eles e indague se têm algum argumento técnico-científico que possa contestar os valores da proposta dos Waimiri-Atroari”, disse Harilson Araújo.

Em 2019, a concessionária Transnorte Energia, dona do projeto do Linhão, anunciou que ofereceu aos Waimiri Atroari um total de 49 milhões de reais como indenização pela obra.

O Ofício Nº 1450/2021, da Funai para o Ibama, traz normas superficiais de cuidados para a execução da obra, incluindo desmatamento e instalação de torres acima do previsto, sem especificar regras de planejamento ou mesmo datas.

O conteúdo do documento expõe as contradições entre o que decidiu o presidente da Funai e o posicionamento dos Waimiri Atroari, quando relata que é preciso “implementar as medidas de mitigação dos impactos reversíveis, conforme aprovado no PBA-CI, por intermédio da ACWA – Associação Comunidade Waimiri Atroari ou por empresa devidamente habilitada”. Mas até agora os indígenas não receberam resposta oficial se a proposta de mitigação foi aceita.

A mesma contradição consta na Licença de Instalação (LI) Nº 1400/2021 (10937645) do Ibama, que terá vigência de seis anos. Por este documento, a licença “poderá modificar as condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar esta Licença, caso ocorra: Violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais; Omissão ou falsa descrição de informações relevantes, que subsidiaram a expedição da licença”.

Documento foi apresentado às autoridades

Rose Hofmann durante palestra em Brasília (Foto: Ministério da Economia)

A Lei No 14.182 foi publicada no Diário Oficial da União quase um mês antes da reunião do dia 11 de agosto de 2021, quando os Waimiri Atroari apresentaram um documento sobre os impactos e os pedidos de compensação.

Entre as autoridades presentes na reunião estavam Rose Hofmann, Secretária de Apoio ao Licenciamento Ambiental e Desapropriação do Ministério da Economia, e Esequiel Roque do Espírito Santo, Secretário Nacional Adjunto da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Em um evento no dia 29 de setembro na capital Boa Vista, o presidente Jair Bolsonaro confirmou a liberação da obra do Linhão e atribuiu à atuação de ministros de seu governo para que a obra fosse liberada. Uma delas é a ministra Damares Alves, titular do MDH. “Temos a Damares Alves, que colaborou bastante para a obra de Tucuruí, seus contatos, suas idas e vindas para buscar as comunidades indígenas para buscar autorização porque ele passa por reservas indígenas”, disse Bolsonaro.

Amazônia Real procurou Rose Hofmann e Esequiel do Espírito Santo para ouvi-los se eles leram a proposta de compensação dos indígenas e suas opiniões a respeito da decisão da Funai. Apenas Rose Hofmann respondeu.

Ela disse à reportagem que mesmo tendo recebido o documento, a análise foi realizada pela Funai, “em seu papel de órgão envolvido no processo de licenciamento ambiental conduzido pelo Ibama” . Ela afirmou que a análise do mérito coube ao órgão indigenista. Segundo Rose, a “Secretaria de Apoio ao Licenciamento Ambiental tem participado do processo como articuladora, buscando otimizar o diálogo entre as partes e dirimir eventuais conflitos”.

Sobre as medidas mitigadoras, ela também atribuiu a função à Funai, dizendo que o “posicionamento foi categórico no sentido de que as obrigações precisam ser integralmente cumpridas, independentemente do valor a ser despendido para tanto, dado que o foco está concentrado no resultado da ação, não cabendo àquela Fundação arbitrar valores para cada programa”.

Segundo Rose Hofmann, o PBA-CI (Plano Básico Ambeintal – Componente Indígena) foi elaborado “a partir de diversas oficinas realizadas pela equipe técnica da consultoria contratada pela TNE em conjunto com as lideranças Waimiri Atroari” em que “os indígenas acompanharam os estudos de topografia, a elaboração do inventário florestal e arqueologia e traduziram para a própria língua as duas versões do material impresso do PBA-CI”.

A secretária afirmou que “o processo de consulta foi conduzido seguindo estritamente os requisitos da Convenção 169 da (Organização Internacional do Trabalho), com diálogo prévio, livre informado e de boa fé, na busca pelo consenso”.

“A busca genuína (de boa fé) pelo consenso foi cumprida e há pontos convergentes importantes, como o cumprimento integral do PBA-CI, independentemente do seu custo de implementação”, afirmou.

Rose Hofmann disse também que, no caso do pedido de indenização (que os indígenas chamam de “mitigação”), “há controvérsia em relação a valores a serem repassados, havendo abertura por parte do Governo Federal para o diálogo”.

Sobre o fato dos Waimiri Atroari não terem recebido resposta à demanda da compensação, Rose Hofmann afirmou que a primeira atividade prevista após a emissão da licença de instalação e antes da mobilização das obras é a realização de reuniões iniciais com os Waimiri Atroari. Mas não informou sobre datas e prazos.

Também estiveram presente na reunião o procurador da República Alisson Marugal, do Ministério Público Federal de Roraima (MPF-RR), e o procurador de justiça Edson Damas, do Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR). Damas informou, na ocasião, que atuou na reunião como “mediador das negociações”. Damas foi procurado pela Amazônia Real para saber o que ele achava da Funai e o Ibama terem autorizado a obra sem comunicar aos indígenas, mas ele não respondeu às perguntas.

O MPF-RR disse que à Amazônia Real que o procurador da República Alisson Marugal acompanha o processo do linhão “apenas para conhecimento da questão”. E que os procuradores que atuam no caso são do Amazonas.

Procurado pela Amazônia Real, o Ibama disse que “não é fiscalizador de atividade indígena e que seguiu aval da Funai para emitir licença de instalação para a linha de transmissão”.

Já a Funai não respondeu aos questionamentos enviados sobre a autorização da licença e sobre as respostas para a proposta de compensação apresentada pelos indígenas, incluindo o valor da mitigação e indenização.

Apib pede saída de Marcelo Xavier

Marcelo Xavier durante lançamento de livro em 3 de agosto de 2021
(Foto: Mário Vilela/Ascom Funai)

Nesta semana, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrou com uma Ação Civil Pública na Justiça Federal de Brasília pedindo a saída de Marcelo Xavier da presidência da Funai. “A permanência de Marcelo Augusto Xavier da Silva na presidência da Funai, semeando a destruição das estruturas estatais de proteção dos direitos indígenas, como se vê em diversos outros órgãos do atual governo, é a falência do Estado Democrático de Direito”, destaca trecho da ACP ingressada na Justiça.

No dia 7 de junho, após a divulgação do inquérito criminal pedido por Marcelo Xavier, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) se manifestou repudiando a iniciativa de Xavier.

“A Coiab repudia os esforços que a Funai tem concentrado para intimidar, perseguir e criminalizar lideranças indígenas que buscam seus direitos ao se manifestarem contra essa política genocida do governo federal instaurada contra os povos indígenas do Brasil. Desta vez o alvo da agressão foi Mario Parwe Atroari, do povo indígena de recente contato Waimiri Atroari, que ocupa o território entre os estados do Amazonas e Roraima. Além dele, mais nove servidores da Funai e dois advogados de duas organizações indígenas foram indiciados”, diz trecho da nota.

O assessor jurídico da Coiab, Tito Menezes, do povo Sateré-Mawé, afirmou que “a licença ambiental para o início das obras expedida pelo Ibama, a partir da autorização concedida pela Funai, sem possibilitar a participação efetiva dos indígenas, fere os princípios da consulta prévia, livre, informada e de boa fé”. De acordo com ele, “é necessário que haja um estudo aprofundado para identificar os impactos que esse empreendimento irá causar ao povo indígena Waimiri Atroari”.

Operação começa em 2024

Linhão de Tucuruí (Foto: Ministério da Economia)

Em nota enviada à Amazônia Real, o Ministério de Minas e Energia disse que “o processo de licenciamento atendeu às regulamentações nacionais e internacionais, o que incluiu a consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas afetadas, bem como o cumprimento do Protocolo de Consulta Waimiri Atroari, estabelecido pelos indígenas”.

De acordo com o MME, as compensações foram definidas “entre técnicos da empresa responsável pelo empreendimento e lideranças indígenas, conciliando o processo de consulta com o procedimento administrativo de licenciamento ambiental’.

Segundo o ministério, com a obtenção do Licenciamento Ambiental (LI), a fase de obras está iniciada. O prazo é de 36 meses para implantação da Linha de Transmissão Manaus-Boa Vista. “Para isso, será necessário realizar mobilização para instalação de canteiros de obras e ações definidas no Plano Básico Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI), abrindo caminho para as atividades de campo”, acrescenta a nota.

Sobre o empreendimento, a pasta comunica que o Linhão “é objeto do Contrato de Concessão n. 003/2021 – Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o qual, junto com seus termos aditivos, estabelece atualmente o prazo de 17,5 anos de prestação de serviço após a entrada em operação”.

O nome oficial do empreendimento é Linha de Transmissão 500 kV Engenheiro Lechuga – Equador – Boa Vista CD e Subestações Associadas. Ela terá aproximadamente 721,4 quilômetros de extensão, atravessando os estados do Amazonas e Roraima, abrangendo um total de nove municípios: Manaus, Rio Preto da Eva e Presidente Figueiredo, no Estado do Amazonas (247,1 quilômetros), e Rorainópolis, Caracaraí, São Luiz do Anauá, Mucajaí, Cantá e Boa Vista, em Roraima (474,3 quilômetros), conforme informações do Ibama.

Dentro da TI dos Waimiri Atroari está prevista a instalação de 250 blocos de linha de transmissão em uma área de 123 quilômetros.

Amazônia Real tentou entrevistar Raul Ferreira, diretor técnico do Consórcio Transnorte Energia (formada pelas empresas Eletronorte e Alupar). Ele não respondeu ao email enviado. Para a imprensa local de Boa Vista, Ferreira informou que as obras devem começar em março de 2022, e custará 2,6 bilhões de reais. Segundo Raul Ferreira, o Linhão do Tucuruí deverá entrar em operação em 2024.

Impactos devastadores

Impactos ambientais por conta da UHE de Balbina na TI Waimiri Atroari
(Foto: Raphael Alves/TJAM)

Durante vários anos, os Waimiri Atroari recusavam a aceitar que as 250 torres de linhas de transmissão cortassem seu território. Em dez anos, os indígenas enfrentaram brigas judiciais e outras tentativas de incluir emendas ‘jabuti’ para forçar a licença. Diante da pressão do governo federal, de políticos e parlamentares e do setor econômico do país, todos os esforços dos indígenas se concentraram em ter sua demanda de compensação e mitigação aceita, já que os problemas ambientais e sociais vão alterar drasticamente a floresta e a vida dos indígenas.

O Linhão do Tucuruí faz parte de uma longa lista de empreendimentos que desde os anos 1970 devastam e reduzem o território dos Waimiri Atroari e os submetem à pressão para que aceitem as políticas governamentais e as ingerências econômicas.

Na ditadura militar (1964-1985), os Kinja viram seu território ser invadido por funcionários do governo para construção da BR-174. As estratégias para forçá-los a aceitar a rodovia foram violentas, com massacres e doenças levadas por não indígenas. O território também foi ocupado por empresas de mineração, a Paranapanema/Taboca, que tem atuação até hoje. Na década de 1990, o território foi inundado para a construção da Usina de Balbina. Durante todos esses processos de violaçôes, o povo Kinja quase foi dizimado.

A Terra Indígena foi homologada em 1989, mas com uma extensão muito menor do que a originária e a que pleiteavam. Hoje, os Kinja, que falam a língua do tronco Karib, têm uma população estimada em 2.300 pessoas.

Indígenas observam reunião com parlamentares no Núcleo de Apoio Waimiri Atroari. (Foto Bruno Kelly/Amazônia Real/2019)

 

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/presidente-da-funai-autorizou-linhao-no-territorio-waimiri-atroari-com-base-em-emenda-jabuti/

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