Rio Branco (AC) – Eldo Carlos Gomes Barbosa, 41 anos, é indígena da etnia Shanenawa, e deixou a aldeia Morada Nova, na Terra Indígena Kaxinawá, na região de Tarauacá-Envira, no município de Feijó, para fazer o mestrado em Letras: Linguagem e Identidade; na Universidade Federal do Acre (UFAC) na capital. A distância entre as duas cidades é de 362 quilômetros em viagem em veículo. Em abril de 2020, ele contraiu a Covid-19 e recebeu assistência pública no Instituto de Traumatologia e Ortopedia (Into) do Acre, onde permaneceu intubado em 11 dos 14 dias de internação. Ele relata que o tratamento foi difícil.

“A situação da saúde, não sei se no Brasil ou só no Acre, é uma situação de tristeza, angústia, medo, de morte, de desespero e maus-tratos. As pessoas não atendem você da forma que é para ser atendido, tratado. Você é invisível lá dentro. Por isso muita gente morre, por falta dessa atenção. Eu não morri porque Deus não quis me levar”, afirma o indígena Shanenawa.

Depois que foi curado da Covid-19 e fazer a quarentena em junho, Eldo decidiu ficar mais perto da família e voltou à aldeia Morada Nova. Ele aproveitou a oportunidade para fazer algumas entrevistas para o projeto de mestrado. Um dos entrevistados foi seu avô materno, João Bertulino. Há duas semanas ele faleceu.

“A gente não pôde fazer nada. Não velamos, porque o corpo estava em Cruzeiro do Sul, não pôde vir para a aldeia, foi sepultado lá. E essa é a realidade que estamos vivendo”, lamentou Eldo Shanenawa, se referindo ao avô paterno João Bertulino. O estudante já tinha pedido, entre os meses junho e setembro do ano passado, a avó paterna, dona Francisca Paulina, e a avó de criação Santa Batista.

Eldo Shanenawa com o avô João Bertulino (Foto: Arquivo pessoal)

Segundo dados da Comissão Pro-Índio do Acre (CPI-AC), desde março de 2020, quando iniciou a pandemia do novo coronavírus no estado até o momento, 30 indígenas morreram em decorrência da doença no estado. São 2.568 casos registrados, sendo 1.310 são indígenas que residem em aldeias e outros 1.258 em municípios acreanos.

Ao todo, 14 povos indígenas já foram atingidos pela doença no Acre, segundo a CPI: Ashaninka, Jaminawa-Arara, Noke Ko’í (Katukina), Shawãdawa (Arara), Puyanawa, Madijá (Kulina), Apolima-Arara, Jaminawa, Huni Kuĩ (Kaxinawá), Nawa, Nukini, Yawanawá, Shanenawa e Manxineru.

Faltam testes rápidos e assistência

Aldeia Shenenawa (Foto: Maria Fernanda Ribeiro/Amazônia Real/2017)

Desde junho, quando Eldo Shanenawa retornou à sua aldeia Morada Nova, ele diz que nenhum teste rápido de Covid-19 foi encaminhado à comunidade. Na ocasião, segundo ele, 99% dos 300 moradores da comunidade estavam infectados pelo vírus, isto é, a maioria.

Eldo relata ainda que seu povo sofre com a discriminação por parte da população que mora nos municípios. “Vamos atrás dos postos de saúde e eles dizem que nós temos a nossa saúde, sofremos esse preconceito, essa discriminação. Como se não bastasse a dengue, a pandemia, os governos, a enchente que chegou agora e acabou com nosso roçado, nossa segurança alimentar”, diz Eldo.

A reportagem procurou a Secretaria de Saúde do Estado (Sesacre) para questionar o atendimento aos indígenas de Feijó. O órgão informou que são os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) os responsáveis por acompanhar a população indígena.

“Nem o governo federal, nem o governo estadual estão aí para a população extrativista, indígena, quilombola, educação, saúde, imagina para pandemia. O governo estadual é muito ausente, coloca representantes indígenas para maquiar o governo dele. Não temos nenhum auxílio do governo do estado”, afirma Eldo Shanenawa.

A população de indígenas Shanenawa é atendida pelo Dsei Alto Juruá. O distrito cobre uma população de 18.176 pessoas de 27 etnias. São 159 aldeias, onde há sete polos bases e uma Casa de Saúde Indígena em Cruzeiro do Sul – uma distância de 278,4 quilômetros de Feijó, onde fica a aldeia de Eldo. Segundo o Dsei, nesta região dez indígenas morreram por Covid-19 e 887 foram infectados pelo vírus.

Fake news na vacinação

Para a secretária-executiva da CPI-AC, Vera Olinda, que acompanha o avanço da Covid-19 entre os indígenas, as subnotificações da doença são uma realidade. “Temos muita preocupação em relação ao descontrole da doença e o número de mortes. Estamos lidando com a subnotificação por falta de testes, por falta de informações sistematizadas, por falta de profissionais de saúde que deixam a gente numa situação de insegurança. Ainda temos o desafio da subnotificação. Se você não tem as informações seguras, como se planeja ou controla?”

Vera acrescentou ainda que a vacinação entre os povos indígenas tem sido difícil, sobretudo por falta de informações e fake news entre os povos, que ainda temem a vacina. Ela disse que na aldeia de Eldo, dos pouco mais de 300 índios, apenas 40 quiseram se imunizar por causa de desinformação.

“É extremamente delicado nesse momento, em que a pandemia está totalmente fora de controle. A situação está pior e muito preocupante entre os povos indígenas, porque o nível de transmissão é muito alto. Felizmente, estamos com a vacina. Os povos indígenas estão sendo vacinados, mas temos muitos indígenas que, por conta de fake news e má fé, não querem ser vacinados”, disse Vera Olinda. (Leia mais sobre fake news aqui)

“Índio urbano”, não

Vacinação de indígenas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Purus
(Foto: Odair Leal/Secom-AC)

Uma preocupação das entidades não-governamentais é a diferenciação que está sendo feita entre indígenas aldeados e os que moram na cidade. Segundo relatos, há resistência dos profissionais na hora de vacinar indígenas do contexto urbano. (Leia mais aqui sobre o tema).

Esse foi o caso de Eldo Shanenawa. Ele também enfrentou resistência na hora de ser vacinado e precisou entrar em contato com o Dseis do Juruá para que a vacina fosse liberada para ele e sua mulher. “É necessário uma campanha muito séria de imunização entre os indígenas, principalmente os que moram em cidades. É um absurdo essa história de que os indígenas que moram na cidade não entram no grupo de prioridade. É descabido, uma grande irresponsabilidade”, destacou Vera Olinda.

Na contramão das mortes entre os indígenas e do avanço da doença, houve uma revalorização da medicina tradicional e de tradições mantidas pelos ancestrais. “Vi algo muito positivo, houve um fortalecimento da medicina tradicional. Viva a nossa medicina tradicional do povo que faz a gente viver e se fortalecer, recuperar e curar”, disse Eldo.

A prática também foi observada pelas entidades que acompanham os povos indígenas. “A valorização da medicina tradicional para cura da Covid tem sido extremamente importante, e os grupos que permaneceram na aldeia e que usaram as medicinas tradicionais, se a gente fizer um estudo, com certeza vão apontar que estão mais livres dessa ameaça”, afirmou Eldo Shanenawa.

Acre bate recordes de mortes

Cheia em Tarauacá, Acre -Além de doenças, como a Covid-19, as populações indígenas têm comprometida sua alimentação devido à destruição de plantações de subsistência
(Foto: Alexandre Noronha/Greenpeace)

Desde o primeiro caso de coronavírus confirmado, o Acre já registrou 68.742 casos da doença. Nesta terça-feira (30), segundo o boletim diário divulgado pela Secretaria de Estado de Saúde (Sesacre), foram registrados 111 casos de coronavírus. Outros 999 exames aguardam resultado. Nas últimas 24 horas, 13 pessoas morreram em decorrência da Covid-19. Já são 1.253 mortes em 1 ano. Nas últimas semanas, a média de óbitos diários varia entre 10 e 12 pessoas.

Só no último sábado (27), foram confirmados 798 casos de infecção pelo novo coronavírus, o maior número diário já registrado desde o início da pandemia, em 2020.

O estado registra contaminação comunitária desde 9 de abril do ano passado, com uma taxa de incidência de 7.411,1 casos para cada 100 mil habitantes, segundo o governo do Acre. O coeficiente de mortalidade (óbitos por 100 mil habitantes) é de 134% e de letalidade de 1,8%. Neste considera-se o número de mortes em relação às pessoas que apresentam a doença ativa, ou seja, aquelas pessoas infectadas que evoluem para óbito.

Dos 106 leitos de UTI nos hospitais da rede SUS disponibilizados no estado, 99 estão ocupados. Pela primeira vez nos últimos dias, a taxa de ocupação total atingiu 93%. Os leitos de UTI estão concentrados na capital, com 85 vagas, e Cruzeiro do Sul, com 26.

“O atual cenário pode piorar. Vivemos um momento dramático em que os números continuam crescendo, e o sistema assistencial já está fadigado”, explica o médico infectologista, Jenilson Leite, que atua na linha de frente do combate à Covid-19 em Rio Branco. “As pessoas que consomem oxigênio em casa já não estão tendo mais, hospitais particulares não estão mais aceitando pacientes por falta de oxigênio. Hospitais públicos estão superlotados, as pessoas estão passando horas na fila até chegar a um ponto com oxigênio”, completa.

De acordo com o médico, a solução imediata para o estado é fazer um pacto com a população, além de investir em campanhas de conscientização e distribuição de máscaras.

“A população precisa colaborar e o governo precisa motivar essa colaboração. O governo precisa distribuir máscaras, ir para os sinais fazer blitze educativas, colocar a vigilância sanitária na rua para fiscalizar. A primeira tarefa é a gente sair dessa situação. Em 14 dias, com a população usando máscara de maneira massiva nós temos importantes resultados”, disse, ao afirmar que a vacina é a solução para frear o avanço da doença.

Nesta semana, o governo estadual assinou um contrato para a compra de 700 mil doses da vacina Sputnik V, que ainda não foi liberada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A compra será feita por meio do consórcio dos governadores do Nordeste e o Fundo Soberano Russo. O contrato é de 40 milhões de reais. A expectativa é vacinar 350 mil pessoas com idade de 18 a 59 anos.

Além da pandemia da Covid-19, o estado do Acre enfrentou as enchentes. Dez 10 das 22 cidades acreanas foram afetadas, incluindo a capital Rio Branco. De acordo com dados da Defesa Civil, a estimativa é a de que 127.331 pessoas foram de alguma forma atingidas pelas inundações. A quantidade representa 14% da população acreana. Em Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do estado, o rio Juruá atingiu em 2021 o maior nível histórico, com 14,36 metros, impactando 33 mil dos seus 89 mil habitantes. Leia aqui.

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/um-ano-de-pandemia-indigenas-do-acre-vivem-sob-medo-e-tristeza/

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